O BEIJO

Flávio Tambellini
RIO DE JANEIRO, 1966, P&B, 35 MM., 78 MIN.

 

Antíteses, hipérboles, paradoxos, e outras figuras de linguagem estão a serviço de um contido paroxismo no teatro de Nelson Rodrigues. Mas não retratam uma opulência intrínseca à cena; realçam a tibieza do mundo e a falta de densidade aparente dos seres. Os dramas dos subúrbios pobres do Rio de Janeiro não galvanizavam nem mobilizavam nenhum aspecto local em que pese a lembrada dicção carioca. O próprio Nelson insistia no caráter universal de suas composições teatrais.

As adaptações cinematográficas de sua obra realizadas no início dos anos 60 pareciam desmentir esse postulado ao realçar o ritmo da cidade e o tecido social como identidades da escrita rodriguiana. Sem aceitar de todo essa constatação, o dramaturgo matizava um pouco a questão em seu depoimento ao MIS-RJ: "o homem só existiria em função do vizinho, da rua, das esquinas, dos credores, das paisagens que percorre", o que equivalia a dizer que o drama humano é o mesmo em qualquer parte, variando no tom mas não na essência. Essa contradição parece estar no cerne da opção estética de Flávio Tambellini. Sua singularidade no rol das transposições rodriguianas, alterando o enredo da peça, esvaziando a componente social e geográfica, lapidando a tipologia interpretativa e emprestando um look expressionista à composição o coloca em um patamar diferente. Nelson não gostou do resultado e creditou o fracasso do filme à ambição artística do projeto, chamando Tambellini de "Kafka do Circo Democrata". A virulência do julgamento sugere um desvio bem mais acentuado que o normal, até mesmo uma traição.

O beijo concentra-se no tema da morbidez, de resto presente na peça, a ponto de inventar e justificar o comportamento do jornalista Mário Ribeiro através de um sentimento de culpa da morte do filho. O expressionismo visual e sonoro justifica-se não apenas como exercício de estilo, mas como leitura conceitual e estética do tema. Mais uma vez, ecoam rebatimentos de Hitchcock (Rebecca), Welles (Soberba) e principalmente Wyler, de onde provavelmente saiu a moldura artística do filme. Pode-se aventar ainda uma linhagem nacional, que envolva Khouri e Rubem Biáfora. Originalmente, o expressionismo tratava o tema da morte com forte ressonância alegórica. Meio século mais tarde, e tendo a variante hollywoodiana como referência, o que se retoma da proposição tem ares ornamentais, fazendo com que o enredo jamais se confunda com os atributos da encenação. O lado sombrio do Rio de Janeiro positivamente não combina com certo chiaroscuro.

Hernani Heffner

PRODUTORA: Serrador Companhia Cinematográfica e Flávio Tambellini P. C.

PRODUÇÃO: Flávio Tambellini

DISTRIBUIDORA: Columbia Pictures

ROTEIRO: Flávio Tambellini, Glauro Couto e Geraldo Gabriel (baseado na peça Beijo no asfalto, de Nelson Rodrigues)

DIÁLOGOS: Nelson Rodrigues

COREOGRAFIA: Jerry Maretzky

FOTOGRAFIA: Tony Rabatoni, Amleto Daissé e Alberto Attili

MONTAGEM: Lupe e Luiz Elias

CENOGRAFIA: João Maria dos Santos

MÚSICA: Moacir Santos

ELENCO: Reginaldo Farias, Ambrósio Fregolente, Jorge Dória, Norma Blum, Nelly Martins, Xandó Batista, Elieser Gomes, Elizabeth Gasper, Glauce Rocha, Jorge Cherques, Miriam Persia, Raul da Mata, Betty Faria, Giorgia Quental, Liana Duval, Paulo Max, Miguel O. Schneider, Marilena de Carvalho.