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A DAMA DO LOTAÇÃO

Neville D'Almeida
RIO DE JANEIRO, 1978, COR, 35 MM., 105 MIN.

 
 

Não é fácil explicar por que este filme se tornou um fenômeno de público desde a estréia. Mas tentarei — e minha hipótese é que Sônia Braga foi a peça-chave.

Em A dama do lotação, Sônia Braga deveria sair do universo "progressista" e sociológico de Jorge Amado para encarar o mundo "reacionário" e psicológico de Nelson Rodrigues. No papel de Solange, ela se transformaria, de virgem tímida e esposa frígida, em uma mulher insaciável, que devora desconhecidos pelas ruas do Rio de Janeiro.

O roteiro do filme teve colaboração do próprio Nelson que o adaptou de uma das narrativas de A vida como ela é... Mas é preciso assinalar o quanto o filme revolucionava o universo moral rodriguiano, como lembrou na estréia o crítico Ronaldo Noronha. Solange retorna ao casamento não como uma prostituta arrependida, como gostaria a sociedade patriarcal, mas como uma mulher razoavelmente liberada e conciliada com o seu desejo. É menos a trama, porém, que desestabiliza a regra culpabilizadora e muito mais a mise-enscène, com sua constante afirmação da força libertária do desejo, no caso, do desejo de uma mulher, exposto sem muitas amarras. Posso estar enganado, mas esta foi a primeira encenação em que uma personagem feminina de Nelson Rodrigues conseguia escapar positivamente do labirinto espiritual do escritor, com suas armadilhas de ressentimento, remorso e frustração sexual.

Se o sexo era o motor da libertação de Solange, o erotismo do filme era a bomba que implodia o espiritualismo pequeno-burguês do enredo. É justamente o erotismo exarcebado de A dama do lotação que deixa patente, aos olhos do espectador, a positividade do desejo feminino. É certo que o filme nos converte em voyeurs de seu exibicionismo, mas, ao mesmo tempo, perversamente, nos faz testemunhar tudo pelo viés da mulher, que passa a agente da ação sexual, submetendo sucessivos machos ao seu gozo.

Naquele contexto preciso, da década de 70, tal filme representou uma visão bastante revitalizadora da pesada herança rodriguiana, feita com aval do próprio dramaturgo. Neville D'Almeida, oriundo do cinema underground, realizou A dama do lotação com um olhar debochado, antiteatral e anticulpabilizador, que encarava parodicamente a dramatização entre quatro paredes da dialética entre sexo e remorso, contrapondo a isso um cinema livre e irreverente, que corria pelas ruas atrás do desejo de uma mulher.

Tal liberdade de estilo e desprendimento moral não teriam tido, porém, tanto impacto não fosse o filme a culminância da carreira de uma atriz e, mais do que isso, do processo de construção de uma nova figuração da mulher no imaginário brasileiro — processo esse que competiu a Sônia Braga protagonizar, como se ela atendesse a um misterioso desígnio de nossa história cultural.

Alcino Leite Neto

PRODUTORA: Regina Filmes, Embrafilme

PRODUÇÃO: Nelson Pereira dos Santos

ADAPTAÇÃO: Neville D'Almeida (baseada em conto homônimo de Nelson Rodrigues)

DIÁLOGOS: Nelson Rodrigues

FOTOGRAFIA: Edson Santos

MONTAGEM: Raimundo Higino

ELENCO: Sônia Braga, Nuno Leal Maia, Jorge Dória, Paulo César Pereio, Márcia Rodrigues, Iara Amaral, Cláudio Marzo, Roberto Bonfim, Paulo Villaça