GANGA BRUTA

Humberto Mauro
RIO DE JANEIRO, 1933, COR, 35 MM., 82 MIN.

 

Ganga bruta começa e encerra com um casamento. Mas não há padre, testemunhas, convidados, nem sequer o corpo completo dos noivos. Há, em compensação, símbolos ritualísticos: a profusão de cruzes, o anel que formaliza a boda, o ajoelhar-se diante da figura divina, filmado do mesmo ângulo no começo e no fim do filme. A pureza do amor romântico é a última coisa a passar pela cabeça de quem assiste essas cenas.

O protagonista, o engenheiro dr. Marcos, é um desses obsessivos culpados que mais tarde vão povoar a obra de Nelson Rodrigues. Não que haja entre o filme e a obra rodriguiana uma relação de influência; trata-se mais de um paralelismo temático e problematização estética. Na noite de núpcias, ao saberse enganado, dr. Marcos atira na esposa. Mais tarde, apaixonado pela noiva de um amigo e tentando exorcizar o desejo, ele provoca algazarras num botequim. Esse acting-out do personagem é recorrente na obra de Nelson e valerá a pecha de freudiano aos dois autores.

Ganga bruta, no estrato social que delineia, está mais próximo dos romances escritos por Nelson ou Suzana Flag do que propriamente das peças, já que nestas sobressai o retrato da pequena classe média suburbana, com temas como o desejo de ascensão e o recalque social. Para a esfera social mais abastada, em que Nelson situará O casamento e Asfalto selvagem, o elemento distintivo de classe mais pregnante é a honra dos homens e o "instinto natural" das mulheres jovens. Elementos diruptivos, as fêmeas lascivas existem para trazer à tona o lado animalesco masculino. O que torna trágica a dimensão masculina é a impossibilidade de escolher entre o papel social e a real fruição dos desejos.

 

Como todo grande autor naturalista — Buñuel, Von Stroheim —, o que interessa a Nelson Rodrigues é menos o determinismo do que a redescoberta do animal humano ali onde anos de civilização acreditavam que transformariam o homem numa racionalidade senhora de si. Ganga bruta inscreve-se no processo, mostra a exuberância da natureza (os jatos d'água, a cachoeira, a imponência do bosque), espelha essa exuberância na sensualidade humana (o vestido rasgado de Sônia ou o olhar de Marcos para o corpo desacordado da mesma Sônia saída das águas) e mostra como a razão humana ainda é um débil títere de erupções íntimas muito mais profundas.

Ruy Gardnier

PRODUTORA: Cinédia

PRODUÇÃO: Adhemar Gonzaga

ROTEIRO: Humberto Mauro (argumento de Octávio Gabus Mendes)

FOTOGRAFIA: Afrodísio de Castro e Paulo Morano

MONTAGEM: Humberto Mauro

MÚSICA: Radamés Gnattali, Heckel Tavares, Humberto Mauro

ELENCO: Durval Bellini, Déa Selva, Lu Marival, Décio Murillo