Portal Brasileiro de Cinema  O cafajeste rodriguiano por excelência

O cafajeste rodriguiano por excelência

Ruy Castro

 
Jece Valadão em Boca de Ouro, de Nelson Pereira dos Santos

Certas frases de Nelson Rodrigues parecem ter sido escritas para ser ditas por Jece Valadão. Exemplo: "O marido não deve ser o último a saber. O marido não deve saber nunca". Jece efetivamente disse essa frase num episódio de A vida como ela é..., a série de contos de Nelson dirigida por Daniel Filho para a TV Globo em 1998 e lançada há pouco em DVD. Mas não foi escrita para ele. Aliás, quando Nelson a criou, em sua coluna da Última Hora nos anos 50, provavelmente ainda nem o conhecia. Mas Jece Valadão, talvez sem querer, já era um personagem de Nelson Rodrigues.

A persona rodriguiana se revelou em Jece desde seus primeiros filmes, como Amei um bicheiro (1953), Rio quarenta graus (1955), Rio Zona Norte (1957) e várias chanchadas, sempre no papel de bandido. Não era o bandido que o tornava um rodriguiano nato (porque José Lewgoy e Wilson Gray também eram sempre bandidos e nem por isso rodriguianos), mas seu jeito de interpretá-lo. Jece era malandro, sensual, debochado e, ao mesmo tempo, tinha humor. Teria sido um magnífico Tuninho em A falecida, a peça com que Nelson, em 1953, inaugurou seu ciclo de tragédias cariocas; ou um grande Bibelot em Os sete gatinhos, de 1958. Aconteceu que Nelson só entrou em sua vida quando, naquele ano de 1957, Dulce Rodrigues, irmã caçula do dramaturgo, precisou de um ator para viver Humberto, o motorista que se torna amante da patroa, numa montagem de A mulher sem pecado que ela iria fazer com sua companhia. Alguém lhe indicou Jece para o personagem. Dulce torceu o nariz porque, com razão, o associava a uma cafajestice autêntica, de rua, o que, para ela, era pouco adequado a um profissional. Mas, à custa de seu talento, Jece venceu a resistência e ganhou o papel.

En passant, ganhou também a patroa. Comportou- se bem nos ensaios, beijando Dulce à moda do teatro, como lhe tinham recomendado fazer (nada de beijos à vera). Mas, assim que a peça entrou em cartaz, diante de uma platéia de verdade, Jece tascou-lhe um beijo também de verdade. E, a provar que nada mais rodriguiano que a família Rodrigues, Dulce ficou tão alterada que, ao fim do terceiro ato, já intimara Jece a pedi-la em casamento. O beijo fora quase uma defloração.

Jece, 27 anos, se casou com Dulce, cinicamente de olho na parte que competira a ela da indenização que os Rodrigues tinham acabado de receber pela destruição, na Revolução de 1930, do jornal Crítica, que pertencia à família — muitos anos depois, ele próprio confessaria isso. Só que, então, Jece protagonizou com Dulce um casamento que parecia saído de uma história de Nelson: casou-se por dinheiro, mas, ao descobrir que o dinheiro não existia, continuou casado por amor — resistindo a todas as desconfianças da família, que o enxergava como a uma radiografia e não o aceitava.

Entre os que não confiavam em Jece estava o próprio Nelson, que, no entanto, sabia muito bem separar o cunhado do ator. O cunhado fazia sua úlcera dar cambalhotas — e Nelson nem imaginava as bandalheiras de Jece fora do casamento.Mas, para o ator, Nelson escreveu o papel de Diabo da Fonseca, o implacável caçador de viúvas, em Viúva, porém honesta, também em 1957. Ninguém dizia melhor seus diálogos, ninguém encarnava tão bem os jovens cafajestes que só ele era capaz de criar.

Nos anos seguintes, Jece foi a ligação direta de Nelson Rodrigues com o cinema. Estava em Mulheres e milhões, o surpreendente filme de Jorge Ileli para o qual Nelson escreveu os diálogos. Produziu a adaptação para cinema de Boca de Ouro e contratou para dirigi-la Nelson Pereira dos Santos, parado no Rio já que sua filmagem de Vidas secas abortara, ora vejam só, por causa das chuvas no sertão nordestino. (Não ficava bem filmar Vidas secas num território alagado.) Com Boca de Ouro quase pronto, as chuvas pararam e Nelson foi correndo para o sertão, cabendo a Jece terminar o filme. Em 1963, Jece foi a principal presença atrás e na frente das câmeras de Bonitinha, mas ordinária, assinado por J. P. de Carvalho. E, antes desses, em 1961, já produzira (e contratara Ruy Guerra para dirigir) Os cafajestes, que, com todos os seus méritos, só existiu porque,muito antes, já existia Nelson Rodrigues — e o próprio personagem de Jece era a prova disso.

Boca de Ouro foi o primeiro filme realmente tirado da obra de Nelson e, para meu gosto, até hoje o melhor. Em nenhum momento traía sua origem teatral, com o milagre de que, ao levar a câmera para a rua a fim de "abrir a história" (tirá-la dos limites do palco), Nelson Pereira dos Santos e Jece não desfiguraram o equilíbrio original da trama. O elenco era excepcional, com Jece no protagonista, apavorante com sua prótese a ouro, jaquetão branco, cabelo gomalinado e uma viscosidade lasciva em cada fala. Diz ele, em suas memórias, que uma grã-fina carioca foi assistir às filmagens e seqüestrou-o no fim do dia — levou-o para os ermos do Joá e o obrigou a executá-la ali mesmo, no matinho, totalmente caracterizado como Boca, com a prótese e tudo. E Jece não era o único bom no elenco. Odete Lara, como Guigui, também estava excepcional, além de Daniel Filho, como Leleco, Maria Lucia Monteiro, como Celeste, e uma plêiade de rodriguianos como coadjuvantes.

Bonitinha, mas ordinária, um ano depois, não estava no mesmo nível, mas foi um sucesso de público: levou ao cinema 2 milhões de espectadores e revelou Vera Viana, a heroína de Nelson por excelência. No mesmo ano, ainda haveria Asfalto selvagem, de J. B. Tanko, com Vera como Engraçadinha e o próprio Jece como Sílvio. O filme era a primeira parte do romance, que, como se sabe, trata de uma paixão entre irmãos. Jece só conseguiu liberá-lo para maiores de 21 anos e, em 1964, os militares o proibiram de vez. A partir dali, Nelson deixou de ser propriedade de Jece. Outros produtores o retomaram, com maior ou menor sucesso (o pior: A falecida, de Leon Hirszman), e Jece assumiu de vez a direção de seus filmes, todos violentos e tratando de bandidos, mas sem Nelson. Nunca mais trabalharam juntos. Em 1970, saiu também da família, ao separar-se de Dulce para se casar com Vera Gimenez.

Um dos problemas com os últimos filmes e montagens de Nelson é que os atores já não conseguem reproduzir a típica dicção rodriguiana. O autor não está mais aqui para ensiná- los. Por isso, fariam bem se, antes de começar o trabalho, conseguissem cópias de Boca de Ouro, Bonitinha, mas ordinária ou Asfalto selvagem e estudassem o estilo de Jece. Ali estaria a ligação direta com Nelson — por intermédio de um grande ator que foi íntimo do autor.

Hei, espere aí! Jece Valadão não é aquele que, há algum tempo, deixou de ser cafajeste para se tornar pastor evangélico? — dirá você. Sim, qual é o problema? Pode haver melhor passado para um candidato a santo? — respondo eu.