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Rossellini Godard: qual herança?

Alain Bergala

O encontro dos jovens redatores dos Cahiers du cinéma com Rossellini, em meados da década de 1950, foi decisivo para que eles se tornassem cineastas. A crítica italiana, sobretudo a marxista, era implacável com os filmes de Rossellini dos anos 50, julgando que ele havia traído seus ideais políticos e seu cinema do pós-guerra, e perdido todo o talento. Visto como um fracasso completo, Viagem à Itália (1954) o desacreditou completamente em seu país. Em Paris, no entanto, um grupo de jovens críticos e André Bazin, o pai espiritual da turma, tomavam esse filme como um modelo. Conforme escrevia Rivette, era necessário partir dali para insuflar sangue novo num cinema francês que eles julgavam moribundo. Um tanto deprimido por sua desgraça na Itália, Rossellini fez questão de encontrar esses jovens que defendiam seus filmes com tanto ardor. Simpatizou com eles e deu impulso a um projeto que fermentou, estimulou e praticamente “fecundou” os futuros cineastas da Nouvelle Vague. Rossellini pediu-lhes que se impregnassem de um lugar, a Cidade Universitária, que a seus olhos refletia toda a complexidade e os problemas do mundo contemporâneo, para que, a partir de lá, escrevessem um roteiro. Mas o cineasta, que prometera encontrar-lhes um produtor e colocar um diretor de fotografia à disposição do grupo, desapareceu do dia para a noite, deixando em seus discípulos o sentimento de terem sido “seduzidos e abandonados”. O encontro, porém, foi muito frutífero e os esboços de roteiro escritos “para” Rossellini não raro geraram os roteiros dos primeiros filmes deles. A admiração dos cineastas da Nouvelle Vague nunca cessou, mesmo quando seus caminhos se separaram e cada um encontrou, individualmente, a direção para seu próprio cinema.

Estranhamente, não houve disputa pela herança rosselliniana no seio da irmandade de cineastas da Nouvelle Vague, mas uma partilha amigável. Foi uma divisão eletiva, em que cada um reivindicava para si um dos aspectos da concepção rosselliniana do cinema. Rivette herdou o caráter de “esboço” de sua escrita fílmica e a sua concepção da relação com o ator; Rohmer, a concepção do caminhar cego do personagem no mundo e o golpe de misericórdia final; Truffaut, a recusa de toda imposição, de todo avanço do cineasta sobre seu personagem no desenrolar do filme. No caso de Godard, trata-se de uma identificação muito mais essencial, fundamental e permanente ao longo de sua vida e de sua obra. Essa filiação pode ser examinada em três níveis: a identificação pessoal de homem a homem; a filiação de filme a filme; a identificação ao método de criação.

1. Identificações godardianas

O primeiro nível dessa herança é o de um mimetismo direto, de pessoa a pessoa, em que Godard toma emprestado de Rossellini certos traços de caráter e de comportamento, constituindo-o assim como “modelo” pessoal. É como Léos Carax fará mais tarde com o próprio Godard.

O nome “Rossellini” é um significante que literalmente assombrou Godard a vida inteira. Desde seu primeiro longa-metragem, Acossado (À bout de souffle, 1959), Godard deseja convidar Rossellini para que apareça em seu filme, como para inscrever fisicamente essa filiação no limiar de sua obra. Numa carta a Truffaut escrita no primeiro dia de filmagem, ele anuncia com certo orgulho: “Haverá uma cena em que Jean Seberg entrevista Rossellini para o New York Herald Tribune”. No final, como se sabe, Jean-Pierre Melville será entrevistado por Patricia Franchini, mas sob o nome fictício de Parvulesco. Não há dúvida de que Rossellini teria aparecido com seu próprio nome se Godard tivesse conseguido obter sua presença tutelar em seu primeiro filme.

Em 1963, Tempo de guerra (Les carabiniers) oferece, a um Godard munido de voluntarismo unilateral, uma nova ocasião de forçar uma ligação com Rossellini. O cineasta italiano acabara de encenar em 1962 a peça de Benjamin Joppolo no Festival dos Dois Mundos de Spoleto, naquela que foi sua única experiência de direção teatral. Seu amigo Jean Gruault conta isso a Godard, que decide fazer um filme a partir da peça. Ele envia Gruault a Roma com um pequeno gravador para que Rossellini lhe conte a peça do seu jeito. No começo do encontro, Rossellini aceita o jogo, mas o diálogo com Gruault rapidamente desvia e o tema da peça é esquecido. Seja como for, Godard fica contentíssimo ao obter esse pseudo-roteiro como uma prova do interesse que Rossellini teria por ele, e o credita orgulhosamente como co-roteirista, o que lhe permite associar o nome de Rossellini ao seu nos créditos do filme.

Uma estranha presença do significante Rossellini aparece depois em Uma mulher casada (Une femme mariée, 1964). O marido conta a história de um desfile de sobreviventes de campos de concentração que engordaram depois de libertos e não cabem mais nos antigos uniformes de prisioneiros. E diz expressamente que essa pequena anedota lhe foi contada por Rossellini. Tudo se passa no filme como se esse pedaço de roteiro houvesse sido escrito pelo cineasta italiano e Godard se limitasse a citá-lo.

Fotograma do filme Uma mulher casada (1964)

Três décadas mais tarde, o significante Rossellini continua perseguindo o Godard de For ever Mozart (1996). Ele faz um plano da porta de entrada do hotel Raphael, em Paris, e um personagem do filme, em seu quarto, diz: “Há quarenta anos, Roberto Rossellini escrevia o fim de Polichinelo nessa mesa”. Esse hotel sempre foi o lugar de residência favorito de Rossellini em Paris, que por muito tempo alugava por ano um quarto ali. Godard encena esse traço biográfico durante a filmagem de Détective (1985), pedindo a seu produtor que alugue por um ano um pequeno quarto no hotel Concorde Saint Lazare, cenário do longa.

Fotograma do filme For ever Mozart (1996)

Conscientemente ou não, Godard mimetizou outros comportamentos do próprio personagem do cineasta italiano. Como Rossellini, que abandonava por vezes suas filmagens para escapadas esportivas (corrida de carro, pesca submarina) ou amorosas (com uma de suas amantes), Godard chegou a usar como álibi visitas a Rossellini para interromper, por horas ou dias, suas próprias filmagens, ao longo dos anos 60. Isso ocorreu com O pequeno soldado (Le petit soldat, 1960): em plena rodagem, ele vai de Genebra a Cannes para ver o cineasta italiano, que estava entre os convidados do festival.

Godard compartilhou com Rossellini, em cinema, o gosto por belas estrangeiras de sotaque charmoso: Jean Seberg, Anna Karina, Hannah Schygulla. No caso de Rossellini, esse gosto se manifestou desde Roma, cidade aberta (1945) e Paisà (1946). O tema “nacional” desses dois filmes não diminuiu sua necessidade de dirigir atrizes estrangeiras para estimular seu desejo de filmar, pelo poder de sedução que elas tinham. Se, para os dois cineastas, a mulher é a figura da alteridade, a estrangeira o é duplamente: enquanto mulher e enquanto estrangeira.

Na vida e nos filmes, Godard amou os belos carros: nos documentos de preparação de seus filmes da década de 1960, ele anota sempre com cuidado os modelos e as marcas dos automóveis, como Rossellini, que fez a lista precisa e detalhada dos carros a serem filmados nas quatro páginas escritas como roteiro de Viagem à Itália.

Fotograma do filme Viagem à Itália (1954)

Por uma espécie de fascinação mimética, Godard provocou mais de uma vez, em sua vida de cineasta, situações parecidas com as que Rossellini havia conhecido. Identificação com o homem ou com o cineasta? É difícil separar uma coisa da outra. De fato, Godard divide com Rossellini (e com seu amigo Rivette) a convicção de que o método faz o filme e de que as estratégias de filmagem são tão constitutivas do filme que se está fazendo quanto as decisões de mise-en-scène.

O mais flagrante desses mimetismos se dá com O desprezo (Le mépris, 1963), que pode ser analisado como um remake de Viagem à Itália, como veremos mais adiante. Mas sua filmagem já foi para Godard uma espécie de revival, condensando duas filmagens do mestre italiano: a de Viagem à Itália e a de Stromboli (1950).

Na de Stromboli, havia uma tensão especial entre Rossellini e a RKO, que nada entendia de seus métodos de filmagem e considerava aberrante filmar sem roteiro escrito, mas via-se obrigada a produzir o filme daquele “louco italiano” porque Ingrid Bergman, contratada da produtora, decidira ir à Itália para atuar a qualquer preço com o autor de Roma, cidade aberta e Paisà.

Durante a filmagem de O desprezo, Godard revive com certo deleite esse conflito diante de Joe Levine, seu rico distribuidor americano que também financia o filme pela presença da estrela (Brigitte Bardot). Na filmagem de Viagem à Itália, é conhecida a estratégia usada por Rossellini com o ator americano George Sanders para deixar sua situação desconfortável, o que supostamente o “ajudaria” a interpretar seu personagem no filme. O cineasta o isolou dos demais atores, hospedando-o sozinho num hotel diferente daquele em que ficou o restante da equipe. Godard usa a mesmíssima estratégia com seu ator americano, Jack Palance: coloca-o longe do resto da equipe (que ele joga contra o ator) e o ignora ostensivamente para inscrever na realidade da filmagem a situação do seu personagem na ficção.

Fotograma do filme O desprezo (1963)

A questão do casal é sem a menor dúvida a célula germinal essencial na descendência Rossellini-Godard. No primeiro período do cinema de ambos, eles partilham da mesma obstinação de sempre voltar a ficções de casal, como se lhes faltasse imaginação. Para eles, o modelo de toda alteridade é a relação homem-mulher no casal, sob a forma do que ali se manifesta como diferença irredutível na relação com o mundo. No primeiro Rossellini, como no primeiro Godard, os problemas de casal constituem a matriz ideal para instaurar, nos filmes, uma triangulação com o mundo como alteridade.

O rossellinismo de Godard não basta para elucidar essa necessidade de casal (que poderia quase parecer reacionária, pequeno-burguesa em relação a suas profissões de fé políticas) na base da maioria de suas ficções. Seu último filme, Adeus à linguagem (Adieu au langage, 2014), não é uma exceção. Ao mesmo tempo em que se vale de uma forma e de uma técnica novas, ele sente necessidade de voltar ao roteiro do casal que quase havia deixado de lado nos filmes precedentes.

Os dois cineastas colocaram em cena suas próprias mulheres, belas e estrangeiras. Há os filmes-Karina como há os filmes-Bergman. Nos filmes de Rossellini com Ingrid Bergman, pode-se ver a olho nu o estado da relação conjugal, o empobrecimento progressivo do desejo que ele tem de filmá-la e mesmo alguns planos de “vingança” do marido sobre a mulher em Viagem à Itália. É mais difícil seguir a evolução da relação de Godard com sua mulher nos filmes que eles fazem juntos, pois o desejo de filmar Anna Karina não está totalmente ligado às condições meteorológicas da biografia amorosa do casal, como atesta O demônio das onze horas (Pierrot le fou, 1965), que parece o filme de um amor e de um desejo loucos de Godard por sua atriz, no momento em que a separação estava consumada.

Outro ponto em comum entre os dois homens, mais anedótico: por muito tempo Godard, como Rossellini, percorreu os livros rapidamente, muitos ao mesmo tempo, em diagonal, para pegar ideias, frases, sem qualquer preocupação de leitura sistemática, com uma grande fé no acaso do bom encontro, no bom momento.

2. De filme a filme

O segundo nível de filiação é o que passa diretamente de filme a filme, quando Godard segue os passos cinematográficos do cineasta admirado. Nos anos de formação de Godard, alguns filmes de Rossellini ficaram inscritos de maneira indelével em sua memória de cinema, pedindo para retornar em seus próprios filmes, sempre que algo, no assunto ou na estrutura, imanta a criação godardiana e faz ressurgir, sob a forma da reminiscência, o modelo rosselliniano. Dois filmes exerceram essa função matricial para o cinema de Godard: Mônica e o desejo (Ingmar Bergman, 1953), que volta sob diversas formas em toda sua obra, e Viagem à Itália. Este é o filme seminal. Godard nunca cessou de dizer que, em seus momentos de dificuldade ou desânimo, era o filme que lhe devolvia o élan e a confiança, por provar a cada vez que bastam dois atores e um carro para fazer o mais belo dos cinemas.

Viver a vida (Vivre sa vie, 1962) foi um momento decisivo na descoberta e na aceitação por Godard de sua própria maneira de fazer cinema. Um filme de Rossellini o ajudou muito a operar essa mutação: Francisco, arauto de Deus (Francesco, giullare di Dio, 1950). Mais que qualquer outro, esse filme contribuiu para que, no momento de Viver a vida, o Godard principiante “se encontrasse” e assumisse sua própria poética. Ele então descobre que é possível fazer um filme, e um belo filme, sem “contar a história” segundo a sintaxe clássica, mas de acordo com um modo paratático em que bastaria dispor blocos uns ao lado dos outros, sem uma gestão pesada da causalidade narrativa, sem gordura narrativa, sem tecido conjuntivo. Na estreia de seu filme, Godard falava com felicidade dessa descoberta: “Peguei um material bruto, pedras perfeitamente redondas que coloquei umas ao lado das outras, e o material se organizou”. Fica evidente que Francisco, arauto de Deus exerceu um papel libertador para o jovem Godard, de certo modo autorizando-o a tornar-se ele mesmo no cinema.

No final da montagem de Viver a vida, Godard aproveita uma passagem de Rossellini por Paris para mostrar-lhe o filme pronto. Custo a imaginar que Godard esperasse o reconhecimento de um de seus filmes por qualquer outro cineasta além de Rossellini, a não ser talvez seus companheiros mais chegados da Nouvelle Vague no início de sua carreira. No carro, a caminho do aeroporto de onde embarcaria para Roma, Rossellini pronuncia uma frase oracular que vai obcecar e inquietar Godard por muito tempo, segundo a qual, com esse filme, ele “roçou o pecado antonioniano mas conseguiu evitá-lo por pouco”.

E o que é esse famoso “pecado antonioniano” que ameaça seu cinema? Provavelmente o da beleza formal excessivamente mostrada nos planos, que sempre causou horror em Rossellini. Em 1962, Godard declara: “O cinema de Antonioni, com seu aspecto de incomunicabilidade, não é o meu (...). Quando se olha demais para as pessoas, é inevitável perguntar-se para que isso serve. Quando olhamos para uma parede por dez horas seguidas, acabamos nos colocando algumas questões sobre a parede, ainda que seja uma parede. Criam-se assim problemas inúteis. (...) É por isso que o filme [Godard se refere a Viver a vida] é uma série de esboços: é preciso deixar que as pessoas vivam suas vidas, não olhá-las demais, caso contrário acabamos por não entender nada”. “Esboço” já era a palavra-chave usada por Rivette para falar do cinema de Viagem à Itália. Godard e seus amigos Rivette, Rohmer e Truffaut herdaram a convicção de Rossellini: a forma não deve jamais ser excessivamente visível enquanto tal – é o real que deve ocupar o primeiro plano. É no momento em que inicia O desprezo, em 1963, que a frase de Rossellini ressoa com mais inquietude em Godard, como se esse filme, sobre esse assunto, na paisagem de Nápoles e de Capri, o colocasse sob o risco do “pecado antonioniano”. Em seu roteiro, ele escreve, provavelmente para si mesmo, mais do que para os destinatários do texto: “Em suma, trata-se de conseguir fazer um filme de Antonioni que funcione, ou seja, de filmá-lo como um filme de Hawks ou Hitchcock”. Godard o rodaria, na realidade, como um filme de Rossellini, ou seja, sem olhar seus personagens “por tempo demais” e filmando-os no mundo como alteridade.

Na mesma entrevista de 1962 para os Cahiers, Godard (parafraseando a definição do cinema de Hawks segundo Rivette) dizia, com respeito ao cinema de Rossellini: “É belo porque é [...]. Em Rossellini, um plano é bonito porque é justo; na maior parte dos outros, um plano se torna justo por ser belo”.

Godard ficaria, porém, impressionadíssimo com Deserto vermelho (Il deserto rosso, 1964), um filme que se poderia chamar de anti-rosselliniano. Em seu cinema dos anos 80, ele cederá por vozes à tentação de fazer planos justos por serem belos. Eu vos saúdo Maria (Je vous salue, Marie, 1983) é uma ardente interrogação, vinte anos depois de Viver a vida e O desprezo, sobre “o exterior e o interior”, e sobre a beleza (da imagem) como critério de verdade.

O desprezo pode ser considerado um remake de Viagem à Itália. No romance de Moravia, de que o filme de Godard é uma adaptação, o casal era italiano. Godard, como Rossellini, sempre precisou de alteridade para fazer seu cinema. No casting, ele recusa a proposta de seu produtor Carlo Ponti, de contratar dois atores italianos: Sophia Loren (mulher de Ponti) e Marcello Mastroianni. Ele vai filmar com Michel Piccoli e Brigitte Bardot, encontrando assim a estrutura inicial de Viagem à Itália: um casal de estrangeiros (dois franceses no lugar dos dois ingleses do filme de Rossellini) passa uma temporada na Itália. Em ambos os filmes, o homem está em viagem de negócios: trata-se, para George Sanders, de vender uma casa; e para Michel Piccoli, de vender sua pluma a um tirânico produtor de cinema. A mulher está numa situação de férias mais contemplativa. Uma casa serve de nó ficcional: o inglês está ali para vendê-la, enquanto o francês vende sua alma para comprar um apartamento em Roma.

O filme de Rossellini age como um ímã sobre a estruturação de O desprezo. A maioria dos elementos de Viagem à Itália reaparecem, mas noutra ordem. É o caso evidente das estátuas do Museu de Nápoles que se tornam estátuas de deuses de gesso no filme sobre A odisseia que Fritz Lang está rodando.

Fotograma do filme Viagem à Itália (1954) Fotograma do filme O desprezo (1963)

Quando Godard faz a célebre cena do apartamento romano, no fim da rodagem, o tempo escasseia: restam-lhe somente alguns dias para terminar o filme e ele ainda está longe da metragem prevista para chegar aos 90 minutos. Ele então opta por um cenário único (o apartamento), no qual se fecha com seus dois atores para recuperar o tempo perdido e, em poucos dias, chegar à duração prevista. Nessa situação tensa e restritiva, ele talvez tenha buscado coragem e inspiração em Viagem à Itália. De todo modo, ele constrói essa longa sequência como uma verdadeira “miniatura” do filme de Rossellini. Viagem à Itália é uma longa briga de casal de uma hora e meia em que os cônjuges nunca se confrontam numa cena comum. Eles não cessam de esquivar-se um do outro, de se cruzar em alguns planos breves, mas cada um traça seus próprios percursos em Nápoles, e esses percursos nunca são compartilhados. O face a face é sempre postergado, assim como a decisão de continuar junto ou se separar.

A longa sequência do apartamento de O desprezo evidencia essa estrutura de Viagem à Itália: a câmera não para de ir de Bardot a Piccoli, sem nunca mantê-los juntos no quadro de maneira estável. Como em Rossellini, a câmera segue em alternância um e o outro, captando, quando eles se cruzam, algumas faíscas de suas fricções.

Fotograma do filme O desprezo (1963)

Central em O desprezo, a reminiscência fica às vezes mais fragmentária, quando uma cena do roteiro godardiano faz surgir a lembrança de uma cena de um filme de Rossellini. É o caso da penúltima cena de Pierrot le fou (O demônio das onze horas), em que Belmondo, antes de se suicidar, telefona para sua casa para saber dos filhos. Quando Godard a filma, ele acaba refazendo, à sua maneira, a cena final de O medo (La paura, 1954), em que Ingrid Bergman, também a ponto de cometer suicídio, telefona para sua casa para deixar uma última mensagem de amor aos filhos. Ainda que Godard tire o pathos da cena e peça a Belmondo que atue com aparente desenvoltura, tudo – até o timbre do toque do telefone – faz ressurgir na memória a cena de Rossellini.

Fotograma do filme O demônio das onze horas (1965)

3. Herança de um método

O terceiro nível da herança, talvez o mais profundo e pregnante em termos de influência cinematográfica, é o da identificação de Godard à postura de Rossellini no ato de criação.

De todos os cineastas da Nouvelle Vague, Godard é sem dúvida o que inovou mais radicalmente no método de fazer um filme. E o método de Godard é de longe o que mais se parece com o de Rossellini. Ao longo da década de 1960, todas as afirmações, em atos e em palavras, do jovem Godard sobre sua maneira de conceber e praticar a criação no cinema são praticamente cópias das declarações de Rossellini sobre seu método. Seria fácil citar inúmeras frases em que é quase impossível decidir se foram pronunciadas por um ou pelo outro.

Godard se situa na via da modernidade aberta historicamente por Rossellini. Pode-se considerar que a modernidade tem uma dupla origem, que produzirá uma dupla linhagem: de um lado, a de Welles, modernidade “programada”, conceitual, em que o projeto de inovação precede a fabricação do filme; de outro, a de Rossellini, modernidade pragmática em que a inovação provém da descoberta, do encontro com a realidade, do enfrentamento das dificuldades no trabalho do filme em processo. Se Godard foi um dos mais inventivos cineastas dos anos 60, foi sempre no encontro com a realidade que ele se viu de algum modo “obrigado” a encontrar respostas inovadoras, assim como Rossellini reinventando o cinema por causa da situação objetiva, criada pela guerra, em que roda Roma, cidade aberta. Godard não premeditou mais a montagem inovadora de Acossado do que Rossellini o fez com as velocidades e fulgurâncias de Roma, cidade aberta. É sempre no encontro com o real, nas circunstâncias da filmagem, nas resistências da matéria e da técnica que os dois cineastas conseguiram, cada um em seu momento, reinventar amplamente o cinema.

Eis alguns traços principais desse método comum:

A recusa do roteiro-padrão e da decupagem.

Godard, como Rossellini, recusa a forma canônica da continuidade dialogada de noventa páginas. Quando o produtor fecha Rossellini num quarto e o impede de sair antes de escrever um roteiro para Viagem à Itália, o cineasta acaba por lhe dar um documento de cinco páginas em que determina as locações (com grande exatidão), os não-atores que atuarão no filme (guias de museus e de lugares turísticos) e os modelos precisos dos automóveis que aparecerão na imagem. Era pouco, mas bastava para preparar a filmagem, de resto improvisada pelo cineasta.

Do mesmo modo, e contrariamente à lenda, Godard sempre escreveu, antes de iniciar o filme, um roteiro de poucas páginas com a sucessão das cenas e dos cenários, apenas o suficiente para permitir que a produção organizasse a filmagem. Para responder sem muito custo a um pedido de roteiro, Godard, assim como Rossellini, praticou um desenvolto copiar e colar de textos preexistentes, romances policiais, patchwork de elementos tirados de toda parte, livros, revistas, jornais, anedotas recolhidas no acaso dos encontros. Truffaut, que foi durante alguns meses assistente de Rossellini, conta como recortava livros com tesoura durante uma viagem noturna de carro com Rossellini, e colava os recortes na forma de um roteiro, que o cineasta entregaria na manhã seguinte.

Rossellini sempre teve a convicção de que seria vão e absurdo decupar uma cena do roteiro no papel, antes da filmagem: “Como filmo em interiores reais e em exteriores sem pesquisa prévia, posso apenas improvisar a mise-en-scène em função da locação na qual me encontro. Escolho meus atores de complementação no lugar, no momento da filmagem, e antes de tê-los visto todos, não posso escrever um diálogo, que fatalmente soaria teatral e falso. Enfim, acredito muito na inspiração do momento”.

Sem mudar uma palavra sequer, Godard poderia tomar para si essa declaração pois, para ele também (assim como para Rivette e Rohmer), decupar a cena, escolher os eixos da câmera e dirigir os atores no espaço são ações que só podem ser feitas na locação real, com os atores, as limitações de luz e de tempo, no momento do encontro do projeto de cena com a realidade das condições de filmagem.

A relação com o ator

Godard é muito próximo de Rossellini na questão do ator. Ambos desconfiam da interpretação, não acreditam de fato na “direção de ator” no sentido autoritário do termo e pensam que o mais importante é não se enganar sobre a pessoa (ator ou não ator) que se escolhe para atuar num filme.

Os dois tinham a convicção de que só se pode trabalhar no cinema a partir do que é o ator. Daí a grande desconfiança do neorrealismo para com os atores profissionais, acostumados demais a esconder seu próprio ser atrás do parecer do personagem, para falar como Robert Bresson.

Rossellini foi o primeiro a fundar essa nova moral: “Escalo um indivíduo que pareça ter o physique du rôle e me permita levar minha história até o fim. Como ele não é um ator, mas um amador, eu o estudo profundamente, aproprio-me dele, o reconstituo e utilizo suas aptidões musculares, seus tiques, para criar um personagem. Assim, o personagem que eu teria imaginado terá talvez se transformado no caminho, mas para chegar ao mesmo objetivo”. Para Godard, essa apropriação-reconstituição do ator é a condição mesma para o sucesso do filme. Ela implica em não se enganar na escolha do indivíduo que vai chegar no filme com tudo o que lhe constitui e, durante a filmagem, em estar à escuta de tudo o que essa pessoa vai insuflar em seu personagem, que provém de seu próprio ser. “Em meus filmes”, reconhece Godard com humildade, “preciso ter pessoas que possam dizer suas verdades ainda que permaneçam dentro de minha ficção. Peço-lhes que a verdade deles suporte minha ficção, senão minha ficção desmorona (...). Tento sempre fazer com que os atores sejam verdadeiros nas situações em que estão. Não tenho imaginação, tento filmá-los como são. Se não funciona muito bem, mudo um pouco, troco uma entonação... O importante é que eles possam ser assim na vida”.

Rossellini, que precisou enfrentar “a perversão da interpretação” muito antes de Godard, inventou por conta própria a estratégia que consiste em tomar o ator com rapidez: “Se dou os diálogos na última hora é porque não quero que o ator – ou a atriz – se acostume. Consigo ainda obter essa dominação sobre o ator ensaiando pouco e filmando rapidamente, sem muitas tomadas. É preciso contar com o ‘frescor’ dos intérpretes.”

Como seus companheiros Jacques Rivette e (às vezes) Truffaut, Godard praticou por muito tempo essa tática do último momento, que consistia, para ele, em escrever seu diálogo no set, na última hora, e dar o texto aos atores poucos minutos antes da tomada. Ou então, quando o texto estava previsto há mais tempo, em dá-lo aos atores na manhã da filmagem, para que eles não tivessem tempo demais para preparar ou para fixar uma interpretação. Godard sempre disse a seus atores que queriam saber qual era “seu personagem” que ele tampouco sabia, que só conheceria no final, quando o filme estivesse pronto, o personagem que tentava construir a partir do ator, na filmagem.

Uma outra estratégia rosselliniana consistia em misturar atores profissionais e não-atores, o que Bazin chamou de “amálgama de intérpretes”. Godard fará disso um de seus princípios: se ele gosta dos atores-estrelas (Brigitte Bardot, Alain Delon, Gérard Depardieu, etc.), também está pronto para confrontá-los com não-atores para impedi-los de atuar com a rotina e os tiques que se constituem ao longo dos anos e dos papéis.

A relação com o timing da filmagem

Os dois cineastas tiveram com frequência as mesmas atitudes em relação ao timing da filmagem. Ambos recusaram o modelo de planejamento puramente econômico do cinema que consiste, para a produção, em elaborar um calendário de rodagem em que todas as cenas estejam encaixadas antecipadamente, dia por dia, em função dos cenários e locações, das disponibilidades dos atores, dos deslocamentos, das cenas diurnas e noturnas. Ainda que um como o outro sempre tenham tido um grande respeito pelo contrato que lhes vinculava ao produtor. Godard aprendeu com Rossellini que é possível ficar vários dias sem filmar se, em seguida, for possível filmar muito rapidamente e recuperar o tempo “perdido”, para respeitar o compromisso com o produtor. Essa política das velocidades diferenciadas está ligada à convicção de que, na criação cinematográfica como na literatura ou na pintura, de nada serve forçar a inspiração e o desejo de filmar. Se a vontade não aparece, se as condições não são boas, é melhor não filmar e até fazer outra coisa para arejar a cabeça e acelerar em seguida, numa fase mais inspirada ou favorável, de modo a concluir no tempo previsto.

Mostrar a história, não contá-la

Uma das convicções mais importantes que os dois cineastas compartilharam é aquela que Godard um dia formulou assim: “é preciso mostrar a história, não contá-la”. Daí a serena determinação de ambos de nunca filmar planos puramente conjuntivos, cuja única função seria garantir o encadeamento narrativo do roteiro, e de assumir na montagem aquilo que outros cineastas, mais comportados, considerariam como buracos na narração.

Dessa convicção nasce a determinação de nunca filmar um plano unicamente porque o filme necessita dele para contar a história. Todo plano filmado deve ser desejado enquanto plano, por vontade e necessidade do cineasta, e não do filme enquanto narrativa.

O cinema é o definitivo por acaso.

É dessa convicção fundamental formulada por Godard, segundo a qual o cinema é o definitivo por acaso, que decorrem de certo modo todas as outras. O cinema é primeiro uma arte do encontro – entre a ideia e o real, entre a pessoa do ator e o personagem –, e nesse encontro é preciso sempre confiar no real, nos acidentes, no que resiste, no contingente.

A Nouvelle Vague é uma escola que se construiu contra a geração dos pais que deveriam naturalmente ter sido os seus, e que ela estigmatizou em bloco, sem fazer distinção, sob o nome genérico de “cineastas da qualidade francesa”. No romance de suas origens cinematográficas, Godard compartilhou com seus amigos da Nouvelle Vague essa recusa da herança da geração que os precedeu no cinema francês.

Eles escolheram uma filiação eletiva a autores singulares, como Jean Cocteau ou Jean-Pierre Melville, que funcionaram mais como tios ou irmãos mais velhos do que como pais. Em seu romance familiar, Godard foi um “filho de sua mãe”, que se construiu em grande parte “contra” seu pai real. Ele nunca precisou de pai, nem na vida, nem no cinema.

“Com relação a Rossellini”, disse um dia Godard, “sempre me senti, inclusive na vida privada, como um filho adotivo. Ele é o único com quem aprendi algo. É um dos raros no cinema que admirei e continuo admirando”. Essa confissão é muito surpreendente vinda de um cineasta (e de um homem) que sempre resistiu ferozmente a qualquer ideia de filiação direta. Mais que um filho adotado por um pai, Godard foi um filho que adotou um pai na pessoa de Rossellini, como o pequeno John Mohune de O tesouro de barba rubra (Moonfleet, 1955), de Fritz Lang. Rossellini não era alguém que adotasse um cineasta mais jovem como herdeiro, assim como Godard sempre se recusou a escolher um filho adotivo no cinema.

Rossellini foi a única identificação paterna que Godard reivindicou, apesar da diferença fundamental entre o apetite, a alegria de viver, a sensualidade do cineasta católico romano e a contenção, o gosto pelo sofrimento, o adiamento em seus filmes de toda forma de sensualidade por parte do cineasta suíço protestante, para quem, contrariamente a seu pai eletivo italiano, o cinema sempre foi mais importante que a vida.

Traduzido do francês por Lúcia Monteiro



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