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Allemagne neuf zéro (Alemanha nove zero)



Devastador retrato do colapso do muro de Berlim, em última análise do Estado comunista soviético e satélites, no caso a Alemanha Oriental. Lemmy Caution, o detetive modelado nos heróis americanos, é o guia nessa caminhada algo melancólica, mas permeada de referências a um passado de realizações artísticas. Desta vez Lemmy - vivido por Eddie Constantine, um americano de Los Angeles que se tornou ator e cantor na França - é um espião à procura do Ocidente, simbolizando também a transição dos anos 60, período de desejos e expectativas, para os anos 90, época de cinismo e consumismo. Ao mesmo tempo desolador e irônico, amargo e doce, o filme possui um apelo emocional raro de se ver nos filmes de Godard.

Allemagne neuf zéro, com o duplo sentido em francês para neuf, nove ou novo zero, é um dos trabalhos mais “subestimados e negligenciados da produção tardia de Jean-Luc Godard”, nas palavras de Jonathan Rosenbaum. Um dos problemas é a metragem, que teria inibido a circulação em salas: apenas 62 minutos. Mal distribuído, o filme só passou em festivais (ganhou prêmio em Veneza), na televisão francesa (responsável pela encomenda, daí a metragem) e em circuitos menores. Muitos godardianos o desconhecem, assim como os selos de DVD – com pouquíssimas exceções, como no Japão.

Todos conhecem, claro, Lemmy Caution, que começou a vida como investigador do FBI, virou detetive particular e aposentou-se como espião, estrelando em Allemagne neuf zéro. Lemmy é dos poucos personagens transcendentes do universo godardiano, alguém que antecede e em certo sentido é maior do que o próprio filme. Se em Alphaville (1965) o diretor franco-suíço surpreendeu os fãs de Eddie Constantine ao mostrar um Lemmy taciturno e pessimista, transitando num cenário de meta-ficção científica – o detetive, nas suas dez ou mais aparições anteriores, era um vigoroso personagem que sempre derrotava inimigos em maior número –, na fita em tela, realizada logo após o fim da Guerra Fria, o tom elegíaco se impõe e contamina o próprio espaço, por onde nosso perplexo herói vagueia solitário à procura do Ocidente. Na alegoria futurista, Godard era um diretor em plena ebulição; no ambiente pós-muro de Berlim, funciona como médium da história, com e sem “h” maiúsculo. No ano 90, estamos a um só tempo dentro e fora das linhas inimigas.

O famoso perfil chapado da cabeça de Lemmy – que lembra os desenhos de Dick Tracy – está lá, contemplando a cicatrização histórica da nova Alemanha. Sua presença é como uma senha para sintonizar a mise en scène de Allemagne neuf zéro. As sucessivas camadas subjacentes à imagem de Eddie Constantine – que morreria logo após as filmagens – indicam uma espécie de solo epistemológico para guiar o espectador na reflexão crítica sobre a película. A estratégia ressoa ao longo dos 62 minutos: imagens que evocam marcos históricos, como a placa “Karl Marx Strasse” jogada no chão, logo no início do filme; situações ótico-sonoras, como as paisagens inspiradas na tradição pictórica romântica, pontuados pela música de Beethoven e outros; encruzilhadas especulativas, como as fulgurantes conexões retóricas, contrapondo filosofia e poesia, asserções e inquietações; e, last but not least, uma camada performativa, como na imagem de uma singela rosa branca, que traz à memória o martírio dos irmãos Hans e Sophie Scholl. Junto com um punhado de estudantes do grupo “Rosa Branca”, os irmãos conclamaram seus compatriotas a repudiar Hitler, distribuindo folhetos na saída da universidade em Munique. Foram executados em 1943.

Nicole Brenez destaca a “Rosa Branca” num belíssimo artigo, conectando o filme aos românticos alemães a partir da plêiade de referências que o atravessam. Para ela, citando Schlegel, “a poesia não pode ser criticada senão pela poesia”, o que confere à “reflexão godardiana uma expansão das potências críticas atribuídas à representação”. A poética de nosso Jean-Luc, ao sorver os mecanismos da “imaginação produtiva” dos românticos, reorganiza o material simbólico do cinema e, ato contínuo, proporciona sua emancipação em “potências práticas”. A definição de “obra poética”, lembra Nicole, não é mais aquela relativa à obediência às leis de composição literária: na nova configuração, “obra poética” é aquela que desenvolve seus modos particulares de organização. Godard puro e duro.

E como se organiza essa poética? Allemagne neuf zéro é parente próximo do fabuloso Histoire(s) du Cinéma (1988-1998), gestado à época, conjunto de revisitações no caudaloso rio do cinema, cuja lógica narrativa privilegia exatamente o interstício, “pequeno espaço vazio entre partes de uma coisa ou entre coisas ligadas”, segundo o Aulete. O interstício separa evocações e movimentos, fugas musicais e citações de imagens, de Stroheim a Murnau. É nessas suspensões que se articula o pensamento cinematográfico, tal como ocorre na poesia - a metafísica se instala nos espaços brancos da página, entre versos, nas laterais. Como começar e terminar um plano, esse fragmento espaço-temporal, carregado de translações e rotações, sujeitos e predicados, pergunta-se Godard? Lemmy Caution atravessa pântanos, inspeciona obras de um portentoso canal e dialoga com Dora, a paciente freudiana; circunda monumentos, homenageia Pushkin, Kafka e Goethe; margeia campos de concentração e tangencia o holocausto; Ocidente, onde está o Ocidente? Uma sucessão de eternos retornos, pulsações que só terminam em um hotel, espaço anônimo, evocação de Alphaville. E o reencontro com a bíblia, largada na gaveta.

A genealogia de “Alemanha ano 90” remete, finalmente, à obra-prima do pós-guerra, “Alemanha ano zero”, de Roberto Rossellini. Apenas uma brevíssima imagem interpolada mostra o garoto vagueando na paisagem detonada de Berlim, sob um céu escuro. Foi Gilles Deleuze quem sublinhou, lembrando Bazin, esse traço genial de Rossellini, que sabia como ninguém terminar um plano, quando “não havia mais nada a dizer”: o tempo puro, ano zero. Uma imagem ligada à outra, sem rodeios. Essa a principal plasticidade de “Alemanha ano 90”, sua moldagem do tempo, o recomeço: Alemanha ano novo.

João Lanari Bo



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