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Histoire(s) du cinéma (História(s) do cinema)

França, 1988-1998, cor, vídeo, 264 min



Série em 8 episódios organizada como uma ampla meditação, a um só tempo, sobre a História do Cinema e a História do Século XX, a partir de um conjunto variado de imagens (cinematográficas, pictóricas, fotográficas) e sons, reorganizados pelo cineasta num fluxo de pensamento em voz alta.

Filme monumental de 4 horas e meia em oito capítulos, História(s) do cinema abre o caminho para o último período da obra de Godard. Música, fotografia, pintura, gravura, escultura, literatura, arquivos, filosofia, poesia, discurso, história e cinema: tudo é montado e mixado ali. De uma beleza extraordinária, o filme faz História com e pelo cinema, em uma forma absolutamente inédita, produzindo um efeito apocalíptico e dando uma visão desesperada de todas as coisas. A imagem e a banda-sonora provocam o retorno de tudo o que o tempo reprime de dor e de injustiça, permanecendo para sempre no sofrimento. Na superfície da tela, emerge tudo o que escapou nas trevas da História, na escuridão do tempo. Nesse contexto, a figura da perseguição tem uma abrangência estética e política.

Os mitos que o cinema fabricou foram, não por sua vontade, projetados e atualizados no real. O que o cinema, infância da arte, prometia, agora se volta contra o real e contra o próprio cinema. Sua força se transforma assim em dor e fraqueza. O que resta dela em História(s) não pode salvar nada, pode apenas lutar contra o esquecimento. Tal é a “fraca força messiânica” (Walter Benjamin) que resta ao cinema. Ela é precisamente a possibilidade de fazer com que as imagens retornem, como se faz com que os mortos retornem. A força que resta ao cinema, a da montagem (“uma ressureição da vida” segundo ele), nunca existiu verdadeiramente, e o que ele chama de “o dizer próprio ao ver” nunca pôde se completar de fato. No entanto, se a montagem não pode salvar ou ressuscitar os mortos, ela pode trazê-los de volta à imagem, e assim “salvar a honra de todo o real” [1A, 32’40” – 32’55”].

Com exceção de algumas passagens do filme, todos os seus fragmentos, visuais ou sonoros, são arrancados de seu contexto, desenraizados. Godard aplica um preceito enunciado por Bresson em suas Notas sobre o Cinematógrafo: “Aproximar as coisas que nunca foram aproximadas e que não pareciam predispostas a sê-lo” (trad. bras., São Paulo, Iluminuras, 2005, p.44). A dispersão é um gesto assumido pelo cineasta, mas ele não se opõe à recorrência de certas imagens, certos sons e certas palavras, que são como obsessões. Sem fôlego, mulheres e homens correm, caem, levantam-se, caem novamente e morrem; fugas, perseguições e quedas são a regra, e a figura da perseguição está longe de ser acessória em História(s).

A dispersão está associada a um fenômeno de escansão que produz o efeito perturbador de um despedaçar permanente e de um eterno retorno às mesmas figuras; todo socorro se torna então impossível. O método do historiador/cineasta não é o da sucessão cronológica, mas o da dispersão. Toda espera cronológica é um erro. O próprio título do filme é objeto de um mal-entendido, pois não se trata de uma história do cinema, mas de História(s) contadas pelo cinema. O cinema é aqui um sujeito: cogito ergo video, penso logo vejo. Dito de outra maneira, o pensamento de Godard não existe independentemente do que se produz na tela, nessa forma cuja ordem é a desordem, a dissonância. Essa unidade no esfacelamento não é experimentação formal, mas pensamento audiovisual, uma escrita em sintonia com seu objeto.

Tudo no filme de Godard é tratado como material de arquivo, provas e testemunhos. A aproximação entre ficções e materiais de arquivo corresponde a uma concepção da História que não pretende estabelecer uma hierarquia segundo a natureza das provas deixadas pelo tempo. Godard não concebe a História como algo constituído de um núcleo duro, estático e homogêneo, mas de elétrons desconectados que são o que, na física, se chama de “força fraca”. Essa força fraca é para ele a própria matéria da História, de tudo o que vaga para sempre na escuridão do tempo e não pode esperar por uma libertação. Forças, porque a regra são as catástrofes e as injustiças. Fraquezas, porque dizem respeito às vítimas, aos oprimidos de todos os tempos. O único alívio possível para essas errâncias eternas é o de serem tiradas do esquecimento. Em História(s), as coisas permanecem dispersas e não há qualquer remédio contra as perseguições e as injustiças. Nesse contexto, não surpreende que as perseguições e injustiças de que são vítimas os amantes de Ray, Mizoguchi e Lang, entre outros, inervem a tela de História(s).

As passagens articuladas ao redor de fugas, quedas, assassinatos e resgates impossíveis são muito numerosas. Alguns exemplos permitem que se veja de que modo é agenciada essa mecânica infernal de perseguições incessantes. They live by night (Nicholas Ray, 1948) [4A, 21’25” – 24’20”], história de dois amantes muito jovens que são capazes de morrer por amor, vivendo-o numa corrida desesperada contra a ameaça de gângsteres e da polícia, é uma figura fundamental de História(s). Bowie é abatido pela polícia enquanto Keechie leva seu filho. Godard filma o último olhar de Keechie em câmera lenta, ampliando assim o alcance do filme de Ray e de seus mártires. Em outro momento [1A, 4’16” – 7’34”], é um cruzamento entre os planos da caça aos coelhos em A regra do jogo (Renoir, 1939) e os da perseguição dos amantes de Mizoguchi (Os amantes crucificados, 1954). Os coelhos são abatidos e os amantes, crucificados. O filme de Renoir e seus coelhos massacrados tornaram-se, no filme de Godard, ícones ao mesmo tempo da barbárie e da resistência. Visualmente, os amantes se substituem aos coelhos. Godard prolonga a metáfora de Renoir e seu alcance histórico.

Essas são imagens de ficção, e os raccords entre imagens de arquivo e ficções constituem de fato uma das grandes singularidades do filme; por exemplo, em uma constelação do capítulo 2B [3’55” – 4’44”], em que Godard está estupefacto, paralisado diante do que ocorre frente a ele, diante dessas corridas desenfreadas de mulheres sobre a Sinfonia em três movimentos, de Stravinsky: de Jennifer Jones em Duel in the sun (Vidor, 1946), com as mãos ensanguentadas, mãos que ela afunda na terra, da corrida de Amy Irving em The fury (De Palma, 1978) à de Anna Magnani em Roma, cidade aberta (Rossellini, 1945) ou à de Shirley MacLaine, amedrontada, em Some came running (Minnelli, 1958). Assassinada Shirley MacLaine ao se jogar em frente àquele que ela ama para protegê-lo, assassinada a jovem mulher de A fúria, assassinada Anna Magnani que corre na direção de quem ama. Todas essas imagens se entrechocam como acidentes visuais no coração da imagem de Godard, que permanece ali boquiaberto e de olhos arregalados, e a série termina com um plano de Marguerite no Fausto (Murnau, 1926), que afunda na neve, inteiramente coberta de preto, como uma madona de luto. Essas imagens de ficção se afinam formalmente e ritmicamente às imagens de arquivo.

Outra constelação [3B, 7’39” – 8’33”] dá a ver com eloquência esse prolongamento entre as imagens de ficção e as imagens de arquivo. Ela é escandida por palavras que, no contexto, são ao mesmo tempo uma oração e uma ordem: “igualdade e fraternidade entre o real e a ficção”. Esse preceito se aparenta ainda mais a uma palavra sagrada porque precedido pela última frase de Jesus em O Evangelho segundo São Mateus (Pasolini, 1964): “Veja qual deve ser a oração de cada dia” [3B, 7’36”]. Mas não compreendamos mal essa fórmula, o que está em jogo na ficção não salva nada no real, trata-se de formas que respondem umas às outras.

A imagem que liga todas as corridas e todos os perigos é a de Antoine Doinel, que corre na praia na última sequência de Os incompreendidos (Truffaut, 1959). No início, Doinel corre da esquerda para a direita, com um efeito de saltos, e a tela se divide em dois, seu semblante perdido preenchendo a porção direita do quadro. O plano seguinte mostra uma corrida no sentido inverso, a dos amantes de You only live once (Lang, 1937), que fogem na floresta. Sylvia Sidney cai e Henry Fonda a toma nos braços antes que se retorne à corrida de Doinel, que entra em uma alternância muito rápida com o rosto de Ingrid Bergman atrás das chamas, em Giovana d’arco al rogo (Rossellini, 1954). Doinel parece querer salvar Joana, mas um plano negro interrompe a alternância, retomada com James Stewart tentando salvar Kim Novak do afogamento em Vertigo (Hitchcock, 1958). No centro do quadro, imagens documentais aparecem de maneira tão furtiva que quase não são vistas. São militares, alguns deles palestinos, e o rosto de uma criança asiática. Os dois termos essenciais da oração/ordem se inscrevem sobre a imagem de Godard: “entre o real e a ficção”, antes de voltar para Doinel, que não corre mais.

Não são as narrativas dos filmes de ficção que se dobram ao real, mas as formas: “Não foi a Guerra da Espanha que nos deixou sobressaltados, mas a fraternidade das metáforas”, diz Godard ao falar de L’Espoir, de Malraux. E as formas aqui são fugas em todos os sentidos e salvamentos impossíveis. A série termina com a parada na corrida de Doinel, seu abandono, pois, como tudo em História(s), não há nenhuma redenção, nenhuma reconciliação, nenhuma esperança. Godard mostra que o cinema é potência de resistência e que poderia ter uma incidência real sobre o mundo; mostra que os filmes deram a ver, e resistiram, mas o cinema não salvou nada. História(s) tampouco salva qualquer coisa. O filme provoca uma convulsão na tela desarticulada pela reemergência dos planos com os quais Godard compõe sua visão da História. Essa reemergência é uma luta contra a recuperação. Relembrar é justamente a “fraca força messiânica” de um cinema que Godard concebe em sintonia com a “tradição dos oprimidos” (Walter Benjamin), a história dos sofrimentos que nada pode redimir. Não se pode fazer sua história, a única possibilidade é a de lutar contra o esquecimento.

Céline Scemama

Traduzido do francês por Lúcia Monteiro



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