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Le mépris (O desprezo)

França/Itália, 1963, cor, 35 mm, 100’



O escritor Paul é convidado por um produtor norte-americano para reescrever o roteiro de uma adaptação fílmica da Odisseia, de Homero, dirigida por Fritz Lang. Enquanto decide se aceita o trabalho, ele procura entender por que sua esposa Camille parece desprezá-lo cada vez mais.

O trailer de O desprezo o anunciava como o “novo filme tradicional de Jean-Luc Godard”. Depois do malogro de Tempo de guerra (1963) nas bilheterias, eis um projeto ao gosto do produtor Carlo Ponti: inspirado no romance de um famoso escritor italiano, filmado em Cinemascope na belíssima paisagem mediterrânea da Ilha de Capri com um elenco encabeçado pela estrela mais quente do momento: Brigitte Bardot. Godard tem plena consciência de sua posição na “engrenagem”, daí o irônico jogo de palavras: “novo filme tradicional”.

Mas não entendamos tal expressão apenas como uma boutade. Examinemos um ponto chave do enredo: a “teoria” do produtor norte-americano Prokosch a respeito da Odisseia. Nela, Penélope seria infiel a Ulisses – por isso ele teria partido de Ítaca e não queria mais voltar. Há uma primeira camada aqui: a do produtor playboy e canastrão que reduz o poema épico fundador da literatura ocidental a uma novelesca trama de ciúme e traição para o prazer reificado do espectador médio. Mas há também outra, mais profunda: cada nova versão não passa de uma variante do mesmo mito, como apontou Lévi-Strauss a respeito do Complexo de Édipo de Freud.

Ou seja, quando julgamos pensar o mito, acabamos descobrindo que, na verdade, ele é que nos pensa – uma máxima que Godard levará para o campo do cinema. Quando olhamos uma imagem, ela nos olha de volta. Do mesmo modo que os espectadores na sala de projeção do estúdio contemplam as estátuas gregas filmadas com reverência, elas igualmente (com seus olhos pintados) os contemplam com a curiosidade dos séculos. Assim, nesse (novo) “filme tradicional” de Godard é o novo quem espia (e expia) a tradição, mas é também a tradição quem espreita de perto o novo (ou seja, o próprio cinema de Godard).

Ainda mais porque se trata aqui de suscitar (e excitar) o dito cinema tradicional no momento mesmo da sua dissolução: os últimos suspiros das grandes produções, as ruínas do sistema de estúdio. Décadas mais tarde, em suas Histoire(s) du cinema (1988-1998), Godard dirá que nada pode ser chamado de arte até o fim de sua época (e que a única coisa que sobrevive a uma época é justamente a arte criada por ela). De certa forma, pois, O desprezo realiza o “filme tradicional” como arte justamente ao decretar a morte de sua época. Há assim, ao mesmo tempo, uma euforia juvenil (delírio da linguagem) e uma certa melancolia nessa realização.

Pensemos nos elementos da composição fílmica: a trilha musical de Georges Delerue e seu rebarbativo leitmotiv wagneriano pleno daquela nostalgia romântica por um tempo perdido, talvez até nostálgico de si mesmo; os enquadramentos e movimentos de câmera altamente estilizados, que por vezes irrompem na diegese com seus travellings e suas panorâmicas cheios de hybris como se fossem eles próprios personagens de uma tragédia; a fotografia de Raoul Coutard, celebração das cores vivas, do mundo mais em harmonia com nossos desejos (para lembrar a citação inicial), mas privilegiando as cores primárias subtrativas e suas estratégias de sentido em oposições fundamentais (embora não irredutíveis) – o azul de Paul e o vermelho de Camille, sua esposa (explícito na decoração da casa, nas toalhas de banho), o azul transcendental (o céu, o mar) e o vermelho material (o Alfa Romeo, as bombas de gasolina, o corpo nu de Bardot visto através do filtro), com a secretária-tradutora (a hermeneuta) usando quase sempre amarelo. A consciência pictórica moderna reencena a tradição, mas também acaba reencenada por ela (em technicolor) – como Paul que ao reescrever a Odisseia projeta a figura de sua esposa em Penélope (que assim passaria a desprezar Ulisses). A psicanálise (e o cinema) como mitologia dos novos tempos.

E o que dizer da presença de Fritz Lang interpretando a si mesmo como o diretor cinematográfico da Odisseia? Homenageado por Godard (que tem um pequeno papel no filme como o assistente de direção do maestro), Lang é a face mais humana do “sistema”, o velho conselheiro das narrativas tradicionais que destila pelo filme sua particular philosophie du cinéma; mas tal homenagem não está livre de ambiguidade, como fica evidente em entrevistas do período em que Godard declarava certa tristeza ao ver o lendário cineasta austríaco aceitando fazer o filme pelo dinheiro.

A partir de Lang, é o próprio Godard (enfant terrible do novo cinema) quem é pensado pelo filme: para além da decadência do cinema industrial, não vemos também ali o início do fim da fase heroica da Nouvelle Vague? De uma certa ideia de cinefilia, de crença nos filmes (Camille lê na banheira o livro de Luc Moullet sobre Fritz Lang)? E, então, para onde? Seria o cinema uma invenção sem futuro (como mostra a inscrição na sala de projeção) ou seria o futuro de uma invenção? Algumas das respostas de Godard são sugeridas em seus outros filmes. Resta a certeza de que O desprezo tornou-se hoje, para todos os efeitos, um “filme clássico”.

Felipe Moraes



Produção

Apoio

Correalização

Copatrocínio

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