Portal Brasileiro de Cinema / Godard APRESENTAÇÃO   ENSAIOS    FILMOGRAFIA COMENTADA    FILMOGRAFIA    FICHA TÉCNICA    PROGRAMAÇÃO    CONTATO

APRESENTAÇÃO


ENSAIOS


FILMOGRAFIA COMENTADA


FILMOGRAFIA


SOBRE OS AUTORES


FICHA TÉCNICA


PROGRAMAÇÃO


COBERTURA DA IMPRENSA


CONTATO


Um construtivismo psíquico: Dinâmicas do esboço segundo Jean-Luc Godard

Nicole Brenez

“Sim, não tem o mar e, bem, então talvez você possa inventar, e você inventa as ondas. Eu invento as ondas, você inventa uma onda, é apenas um murmúrio... É uma onda, você tem uma ideia que é apenas, que é apenas vaga, mas que já é movimento, é isso o movimento.”

Jean-Luc Godard, Scénario du film Passion, 1982.

A estética de Godard não apenas se adequa à forma do esboço, como inventa uma concepção do esboço integral e involutiva, cuja dinâmica não visa à elaboração de uma obra, mas ao retorno às determinações e origens de uma necessidade criadora. Podemos falar de um construtivismo psíquico, no sentido de que o trabalho de Godard integra as iniciativas do construtivismo materialista dos anos 1920, mas o reelabora por meio da integração de um parâmetro psíquico a priori oposto: a intuição criadora. Esse novo parâmetro deve tanto a Henri Bergson e Sigmund Freud quanto ao conceito de “intuição absoluta” de Fichte e Schelling.

Para tratar dessa dimensão formal não a partir de conceitos, mas das próprias obras, vamos examinar um dos filmes menos conhecidos de Godard até hoje, Reportage amateur (maquete expo), média-metragem de 45 minutos correalizado com Anne-Marie Miéville em 2006. O fato de ser pouco conhecido não torna esse filme menos crucial, pois ele alcança de modo pleno e inesperado alguns dos ideais estéticos mais estruturantes de Godard.

O primeiro ideal é o de uma parceria criativa do casal, objeto de muitas reflexões e iniciativas ao longo das seis décadas do trajeto godardiano. Filmar, falar, refletir, criar e viver a dois: nesse quesito, Reportage amateur oferece a realização inesperada do que talvez constitua a utopia godardiana por excelência – para a qual os irmãos Lumière forneceram o modelo histórico, frequentemente formulado em termos de impossibilidade e melancolia.

Mas apenas o segundo ideal será o tema deste texto: a forma do esboço, estabelecida como horizonte da representação e aqui realizada. Perseguiremos, assim, dois objetivos: precisar de modo circunstanciado o contexto da realização de Reportage amateur e traçar em seguida uma taxonomia das formas godardianas do esboço.

1. A Realização de Reportage Amateur

A existência de Reportage amateur inscreve-se no âmbito do projeto Collage(s) de France, que Godard desenvolveu entre 2004 e 2006. Eis suas principais fases:

Fase 0. O acordo.

Em 2004, por iniciativa de Dominique Païni, então Diretor de Desenvolvimento Cultural no Museu Nacional de Arte Moderna, Godard aceitou o princípio de conceber uma exposição no Centre Pompidou. De início, não se tratava de uma exposição sobre ele próprio (ao contrário das exposições monográficas sobre Chantal Akerman, Jean Cocteau ou Alfred Hitchcock, organizadas por Païni nos anos anteriores), mas de uma exposição sobre o cinema segundo Godard, no rastro do grande “canteiro de obras” das Histoire(s) du cinéma, iniciado evidentemente muito antes, mas realizado fílmicamente de 1988 a 1998 e prolongado em 2004, com os Moments choisis des Histoire(s) du cinéma, transfer em 35mm de uma remontagem seletiva do conjunto videográfico. Moments choisis possuiria o poder de transformar o Museu de Arte em sala de cinema comum, já que o filme foi lançado no Centre Pompidou e projetado em horários regulares de sala comercial (14h, 16h, 18h, etc.). É a primeira característica do projeto godardiano: deslocar a destinação e o funcionamento do Museu. Nesse sentido, a iniciativa de Godard completa a de Marcel Duchamp: em vez de apossar-se de um objeto trivial (o urinol e o porta-garrafas) para revelar a força de legitimação própria à instituição, inverter as lógicas institucionais para manifestar a potência do filme (se a patrimonialização quiser ir até o fim em sua vontade de mostrar a obra, deverá desnudar-se em comercialização).

No decorrer dos anos 2004-2006, a edição de Histoire(s) du cinéma em DVD, em CD e em livros ocupou bastante Godard. Se uma das grandes dinâmicas da obra consistiu em desdobrar, propagar, infundir e inocular o cinema em todos os suportes e locais possíveis, a fim de conjurar seu desaparecimento e perenizar, senão sua técnica, ao menos suas “histórias” (quer dizer, tudo o que ele permitiu conceber, tanto na prática quanto na teoria), na virada do milênio a questão das transferências, suportes e modos de circulação das imagens e dos sons tem uma virada extremamente concreta e plural. É a segunda característica da exposição: cenografar a reprodutibilidade das imagens – como Dominique Païni analisa, justamente, no artigo intitulado “Souvenirs de voyage en utopie. Note sur une exposition désœuvrée”.

Após ter aceitado o princípio de um evento no Centre Pompidou, Godard formula diversas propostas para Dominique Païni. As trocas não pararam ao longo dos dois anos de preparação intensiva: o conjunto considerável das correspondências, gráficos e desenhos enviados por Godard constituiria uma obra em si, talvez tão arrrebatora quanto a própria exposição, além de uma contribuição primordial sobre as relações entre arte, cinema e política. Ao longo de toda a preparação da exposição, Godard não cessou de pôr à prova os limites da instituição, com sugestões ou demandas tão significativas quanto irrealizáveis, como por exemplo, contratar e remunerar os sem-teto refugiados nas fachadas do Centre Pompidou para que eles olhem os visitantes da exposição, como os famintos que olham, através do vidro, “os felizes” comerem em Flaubert.

Fase 1. Uma nova série de filmes

A primeira fase do projeto inscreve-se na tradição godardiana das séries videográficas 6 x 2 (1976) e France tour détour (1977-78): tratava-se de realizar um afresco de nove filmes, intitulado Collage(s) de France, que seriam projetados um por mês. Desse projeto inicial restam apenas dois elementos, além dos rascunhos escritos:

- a cenografia em nove salas que deveria ser a da exposição e que vemos ser explicada em Reportage amateur.

- a realização de um único filme, intitulado Vrai faux passeport. Fiction documentaire sur des occasions de porter un jugement à propos de la façon de faire des films, montagem de 55 minutos de trechos de filmes ou de emissões, qualificados ora com o termo “bônus”, ora com “malus”.

Fase 2. Uma exposição

Na segunda fase o projeto transformou-se numa exposição que se intitula Collèges de France, le cinéma exposé. A criatividade de Godard foi mobilizada pelas relações entre o nome do Museu Nacional de Arte Moderna, Centre Pompidou, e o de sua produtora, Périphéria: permitir à periferia invadir o centro constituiria umas das lógicas de reflexão. Durante essa fase, Godard enviou por fax inúmeras propostas, recomendações e observações ao Centre Pompidou que dizem respeito tanto à lógica do todo (os nomes das nove salas mudariam diversas vezes), quanto a detalhes da escolha das obras, de sua distribuição no espaço e da polissemia de suas aproximações. Cada projeto devorou e reestruturou o precedente. Godard sintetizou parte dessas reflexões num memorando organizado em três capítulos:

- “Projeto 1: o cinema exposto

- Projeto 2: o cinema proibido (reduzido)

- Projeto 3: o cinema exilado”

Os nove filmes originalmente previstos tornaram-se “Sete filmes/estudos”, como Godard os nomeia, sem especificar seu conteúdo mas colocando-os sob a égide de uma citação de Gustave Courbet que havia se tornado um emblema do realismo:

“Esses sete filmes/estudos (Courbet escrevera “esses três quadros”) não possuem semelhantes nem na tradição nem nos tempos modernos.

Eles não valem nem um tostão em ideais.

Seu valor é serem exatos como a matemática.”

(Gustave Courbet, carta a Francis Wey, 20 de abril de 1861.)

Godard planejava mostrar os sete filmes/estudos em uma salinha específica, projetados em vídeo, mas essa sala tornou-se um drive-in. O autorretrato de Courbet em Désespéré [desesperado] (1841) deveria estar na entrada dessa sala. Os sete filmes opõem-se a duas outras séries de filmes:

- Por um lado, a um corredor reservado aos “Acadêmicos” ou “Colaboracionistas”, representados pela imagem de Sharon Stone cumprimentando a multidão no Festival de Cannes com um gesto que Godard assemelha à saudação nazista. Os filmes poderiam ser expostos ali sob a forma de fotografias. Essa galeria tornar-se-ia mais tarde uma sala, intitulada “Les salauds” [os canalhas].

- Os “filmes/estudos” opõem-se, por outro lado, aos filmes “independentes”, reunidos num “Salão dos independentes” – que retoma a denominação da célebre instituição do século XIX na qual se refugiavam os quadros recusados pelas exposições oficiais. Os “Independentes” são exibidos um por dia ou vários de uma vez, em telas planas, com a “Barmaid” (anglicismo de Godard) do famoso Bar em Folies-Bergères de Manet (1882) – matriz da abertura de Vivre sa vie (1962) – acolhendo os visitantes.

A tríade de Godard revisita, portanto, a de Fernando Solanas e Octavio Getino, que opunha o Primeiro Cinema Industrial (Hollywood), o Segundo Cinema de Autor (álibi cultural) e o Terceiro Cinema de Guerrilha (cinema de libertação). No lugar do cinema de luta armada, encontramos, assim, um cinema que diz respeito à análise científica das imagens – iniciativa posta em prática nos capítulos 10 e 11 de La hora de los hornos (1968), “Violência cultural” e “Ideologia”. Não há aqui, portanto, nenhum recuo.

No decorrer do ano de 2005, a cenógrafa Nathalie Crinière encontra-se com Godard e realiza dois grupos de maquetes, em duas escalas diferentes, para que ele possa visualizar seu projeto: o primeiro reproduz o conjunto das nove salas; o segundo, cada uma das nove salas. Depois, para melhor concretizar suas escolhas e explicá-las a Dominique Païni, a Nathalie Crinière e à equipe do Centre Pompidou, assim como a si mesmo, que continuava obviamente a refletir, Godard organizou uma visita guiada da maquete completa na sua casa em Rolle. Anne-Marie Miéville filmou essa visita em vídeo e Godard enviou o resultado ao Centre Pompidou sob o modesto e prático título que constava na fita: Reportage amateur (maquette expo). O filme constitui, portanto, um documento técnico, o equivalente fílmico tanto de um esboço (para o autor), quanto de um manual (para os destinatários) e de uma viagem transversal no cérebro de Godard (para os não-destinatários que nós somos).



Fotogramas do filme Reportage amateur (Maquette expo) (2006))


O filme responde plenamente à polissemia do termo artístico de Esboço:

- ele faz parte de uma pesquisa preparatória

- ele oferece um rascunho, um primeiro gesto fílmico

- ele traça um plano sumário, um conjunto de notações e indicações que servem de ponto de partida para uma obra

- ele oferece uma visão geral do projeto.

Paralelamente (em termos godardianos, seria a Fase 2B), mais uma vez por iniciativa de Dominique Païni, os preparativos da exposição foram acompanhados por intensos diálogos com outra instituição: o estúdio nacional do Fresnoy. Seu diretor, Alain Fleischer, foi a Rolle filmar Godard numa conversa com Jean Narboni. Ele estabeleceu ainda uma conexão eletrônica entre Rolle e o Fresnoy, para que os alunos pudessem ver Godard trabalhando. Notemos que essa iniciativa tenha talvez inspirado Christian Boltanski, que, em 2010, passou a vender para um colecionador o direito de filmar seu atelier 24h, planejando vender por assinatura a seus admiradores a apreciação de suas obras pela internet. Os esforços de Alain Fleischer resultarão, em 2007, no filme Morceaux de conversations avec Jean-Luc Godard, lançado após a exposição. Mas é notável que o desejo de expor o estúdio de Rolle tenha se tornado cada vez mais central no projeto final da exposição parisiense: literalmente, Péripheria se posta no Centre. Godard descreve o “Projeto 3, o cinema exilado” deste modo: “Melhor simplesmente expor o atelier de Périphéria, o que não puderam nem quiseram fazer nem a Femis, nem o CNC, nem o Collège de France, nem o Conservatório de Montreal, nem o Museu de Arte de Rotterdam, nem o Studio National des Arts Contemporains du Fresnoy. (...) Para o Centre, o projeto 3 torna-se simples em sua realização, já que se trata apenas de uma cópia em tamanho natural do ateliê de Périphéria – esse trabalho de cópia demanda, aliás, um rigor e uma total meticulosidade no que tange tanto ao material de áudio e de vídeo quanto ao literário (a biblioteca), o que demandará longos mas tranquilos meses de reconstituição exata.” Godard transportaria de fato vários sofás, cadeiras e camas de Rolle – de forma que o espaço do estúdio passasse a incluir o espaço da vida cotidiana, tudo tornando-se trabalho. Impossível não pensar aqui nas reflexões de Paul Valéry sobre a fabricação da arte:

“Às vezes penso que o trabalho do artista é um trabalho de tipo muito antigo, e o próprio artista, um sobrevivente, um operário ou um artesão de uma espécie em extinção, que fabrica numa câmara, usa procedimentos totalmente pessoais e empíricos, vive na desordem e na intimidade de suas ferramentas, vê o que quer e não o que o cerca, utiliza potes quebrados, sucatas domésticas, objetos inutilizados...”

Fase 3. Montagem e destruição

A terceira fase consistiu em confundir a montagem da exposição com a destruição do projeto. Nem o orçamento nem o espaço (1100 m) permitiam construir as salas e reconstituir a Périphéria em escala humana. Então, Godard rebatizou a exposição “Voyage(s) en utopie. Jean-Luc Godard, 1946-2006. À la recherche du théorème perdu” [Viagem(/ns) em utopia. Jean-Luc Godard, 1946-2006. Em busca do teorema perdido], fundiu as nove salas em três espaços (“Anteontem”, “Ontem” e “Hoje”) e colocou na entrada um painel acusatório anunciando que “Voyage(s) en utopie” representava apenas o abandono de um projeto anterior. A exposição aconteceu de 11 de maio a 14 de agosto de 2006. Entre os itens expostos, figuravam os conjuntos de maquetes, às vezes empilhados uns sobre os outros para salientar o trabalho de variação das escalas e a estratigrafia dos projetos que se sucederam ao longo dos anos. Além das citações de filmes de origens diversas e do filme Vrai faux passeport, concebido para a ocasião, mas feito inteiramente de citações, Godard expôs numa parede, em pequeníssimas telas rodeadas por quadros, que as fazem parecer miniaturas, seis filmes – dois dos quais foram rodados, senão para a exposição, pelo menos no momento de sua preparação.

1. Um filme inacabado e exibido pela primeira vez: Une bonne à tout faire [Uma empregada que faz tudo] (8 min).

Os planos que constituem Une bonne à tout faire datam de 1981. Filmado por Vittorio Storaro, o cineasta Andrei Konchalovski aparece mergulhado num “very beautiful” livro sobre Cézanne e lê em voz alta trechos em russo, que sua assistente traduz em inglês: o texto articula Cézanne e Marx e clama por uma sociedade na qual não existiriam mais pintores no sentido de uma corporação especializada, mas “homens que pintam”. Cézanne é creditado como “o primeiro pintor que, diante de uma tela branca, ainda não sabia o que ia pintar” – ele seria então o primeiro pintor a pensar de acordo não com um texto, mas com um regime, de início, visual. Advêm em seguida dois planos-sequência de filmagem com grua, coreografados, dos quais o primeiro se apresenta como o ensaio (“rehearsal”) do segundo; e planos de reencenação de quadros de Georges de La Tour. Elevada e em contraluz, a câmera passa lentamente diante de uma tela de um branco reluzente. A voz de Godard lê em off trechos de um texto publicado mais tarde com o título “Vu par le bœuf et l’âne”, especialmente este: “Ele pinta. Ele faz esse cinema mudo que os fabricantes de armas e os construtores de textos se esforçarão para enfim calar, junto com o som e a alma dos povos ou do simples cidadão.”

O conjunto é rodado no estúdio Zoetrope de Coppola, e aparece a posteriori como a arqueologia de outro grande filme de estúdio, Passion, rodado em 1982. Une bonne à tout faire concentra o conjunto das problemáticas temporais invocadas por Godard no esboço: o filme em modo incoativo que explora incansavelmente o limiar de sua gênese; o filme no presente de sua fabricação; o filme no futuro do devir inusitado da criação; o filme no mais-que-perfeito do esquecimento pelo qual ele passou; o filme no condicional do arremate impossível; o filme buscando sair do tempo, por meio de sua queda final e brutal no escuro, associando elisão (final de frase faltando) e silepse (duplo sentido do termo bonne, ao mesmo tempo adjetivo místico – a “boa nova” é a Anunciação – e substantivo auxiliar – a criada): “Então ela traz uma nova. Uma boa/criada...”

2. Um filme que parece uma sobra ou uma excrescência.

Ecce homo/ Excès Oh Mot! (2’), curto ensaio de dialética visual sobre a iconografia dos carrascos e das vítimas, parece uma sobra ou então uma excrescência de The Old Place. Small Notes Regarding the Arts at Fall of 20 Century (1998), documentário de Godard e Anne-Marie Miéville sobre e para outro museu, o MoMA de Nova York, ou de Histoire(s) du cinéma.

3. Um filme concluído e já em circulação: Je vous salue, Sarajevo (1993), que entra em consonância com a sala “Les Salauds”.

4. Três filmes assinados por Anne-Marie Miéville, cujos títulos reunidos formam uma declaração:

Ce que je n’ai pas su te dire [o que eu não soube te dizer] (2’35”) oferece uma câmera lenta irregular e um zoom out sobre um rosto de mulher esboçando um sorriso, ao som de uma versão de Ne me quitte pas. O filme termina com a cartela “mas que eu te digo no meu coração há tantos anos”.

Dans le temps [no tempo] (4’) consiste essencialmente em planos de gatos dormindo ou brincando na luz. Ele se situa entre o célebre filme de Maya Deren e Alexandre Hammid, The Private Life of a Cat (1944) e as explosões contemporâneas de gatos na internet, como encontraríamos mais tarde no início de Film socialisme (2010).

Souvenir d’utopie [lembrança de utopia] (6’15”) é uma visita em closes muito próximos e fixos das maquetes de Collages de France, sem texto, mas ao som de trechos musicais e ruídos discrepantes. É, portanto, o único filme dessa série rodado em conexão com a exposição, que ele já trata no passado.

Mas a escolha mais impressionante se dá in absentia: trata-se de não projetar Reportage amateur. Quanto a essa decisão ou esse esquecimento, podemos formular a hipótese de que o caráter eminentemente pedagógico e inventivo do filme tornou-o invisível e inaudível, literalmente inaparente, no momento da montagem, quando se tratava de destruir, e não mais de edificar. Em outras palavras, o filme talvez mais central e significativo em relação à exposição é posto fora de campo.

O filme também não foi projetado quando da retrospectiva integral que acompanhou Voyage(s) en utopie, de 24 de abril a 14 de agosto, no Centre Pompidou, sendo que as programadoras Sylvie Pras e sua assistente Judith Revault d’Alonnes sabiam perfeitamente de sua existência. “Reportage amateur realmente não foi projetado no momento da exposição, não porque JLG o tivesse interditado, mas porque para ele tratava-se apenas de um documento de trabalho (filmado por AMM) destinado às equipes do Centre, para explicar-lhes o projeto.” É, portanto, de fato o caráter prático e modesto do filme que o afasta do corpus godardiano.

2. Pequena taxonomia das formas godardianas do esboço

Talvez Reportage amateur constitua, enquanto esboço real e eufórico, uma ocorrência demasiado espontânea e consumada para suportar simplesmente entrar no corpus da obra.

O esboço constitui, de fato, uma dinâmica estruturante no trajeto criador de Godard, a tal ponto que podemos dele extrair uma taxonomia das relações entre esboço e finalização. O ponto de partida histórico dessa concepção do esboço estaria em Paul Valéry:

“Finalizar uma obra consiste em fazer desaparecer tudo o que mostra ou sugere sua fabricação. Segundo essa condição ultrapassada, o artista só deve se manifestar pelo seu estilo e deve seguir se esforçando até que o trabalho tenha apagado as pegadas do trabalho. Mas como a questão da pessoa e do instante passou a ser cada vez mais importante do que a obra em si e a duração, a condição de obra finalizada pareceu não apenas inútil e incômoda, mas até contrária à verdade, à sensibilidade e à manifestação do gênio. A personalidade parecia essencial, até para o público. O esboço passou a valer pelo quadro.”

Podemos distinguir em Godard seis modos principais de relações entre esboço e obra:

1. Uma relação clássica de separação e sucessão.

Tal é o caso da série de esboços preparatórios de filmes para ficção: Scénario de Sauve qui peut (la vie). Quelques remarques sur la réalisation et la production du film, em 1979; Passion, le travail et l’amour: introduction à un scénario, ou Troisième état du scénario du film Passion, em 1982; Petites notes à propos du film Je vous salue, Marie, em 1983...

Godard reivindica nestes filmes a existência de um roteiro visual, e o esboço torna-se um exercício reivindicativo, destinado aos produtores do futuro filme.

2. Uma relação de comensalismo.

Trata-se aqui de um esboço interno a uma obra concluída, como os planos do filme épico dentro de Le mépris (1963).

3. Uma relação de simbiose.

É o modelo construtivista moderno: o filme confunde-se com sua fabricação, ele torna-se esboço geral. A esse respeito, podemos lembrar os slogans para Week-end (1967) ou Tout va bien (1972): “um filme que está se fazendo”, “um filme perdido no Cosmos”...

No modo ficcional, é o caso de Le gai savoir (1968), que encena o aprendizado do cinema e experimenta “modelos de filmes”; no modo documental e ensaístico, o de Numéro deux (1975), estudo preparatório sobre as relações entre cinema e vídeo, que se volta para as qualidades das respectivas imagens assim produzidas, num preâmbulo prático e teórico às longas séries em vídeo realizadas no decorrer dos anos 1980.

4. Uma relação de negação e substituição.

O esboço comenta a não existência da obra, sua impossibilidade ou seu desaparecimento, e a substitui.

É o caso de Lettre à Freddy Buache. À propos d’un court-métrage sur la ville de Lausanne (1981) ou Le rapport Darty (1989), que fabulam sobre a recusa de um filme de encomenda e sua substituição pela análise crítica da própria encomenda.

5. Uma relação invertida de aperfeiçoamento.

Tal é o caso de Scénario du film Passion (1982), já que esse ensaio, também rodado no estúdio de Rolle, descreve a gênese de Passion, mas é realizado após o filme: tal como um esqueleto que sai de seu corpo, o roteiro só pode se dar após o filme, que cai, portanto, em um estado de inacabamento a posteriori, assim como a própria filmagem fictícia.

Aqui, o “pós-esboço” inacaba o filme que ele acompanha. Podemos identificar aí um dos grandes desejos estéticos godardianos, que o cinema enquanto meio torna impossível: as possibilidades de rasurar e apagar as imagens.

6. Uma relação de redefinição.

Tal é, portanto, o caso de Passion (1981), que não apenas descreve ficticiamente a filmagem de um filme que consiste a encenar quadros, mas só se conclui graças à restituição de sua gênese, tornando-se retroativamente um esboço.

Pois, mais do que uma forma local, o esboço consiste em uma dinâmica, no sentido de que o princípio de estudo preparatório estende-se para além das entidades fílmicas que prolongam os modelos plásticos e literários.

Ao princípio de preparação, portanto de inacabamento constitutivo, alia-se efetivamente o de incompletude, determinado por valores simultaneamente éticos e políticos. O princípio de incompletude, como todas as dinâmicas que agem em Godard, provém de duas fontes antagônicas: por um lado, Robert Bresson e sua célebre fórmula: “Não mostrar todos os lados das coisas. Margem de indefinido” e, por outro, Bertolt Brecht e seu Me-ti, ou o livro das reviravoltas, de 1937. “Me-ti dizia: ‘É o mundo inteiro que faz a imagem nascer, mas a imagem não engloba o mundo inteiro. É melhor ligar os julgamentos à experiência do que a outros julgamentos, quando os julgamentos devem ter como objetivo dominar as coisas.’ Me-ti era contra o procedimento que consiste em construir imagens muito completas do mundo.” A partir de 1967, Godard retoma com frequência a fórmula de Brecht, especialmente em seu manifesto “Que faire?”, de 1970.

O esboço e a imagem que falta pertencem ambos ao repertório das formas de pedagogia crítica desenvolvidas pela obra de Godard. No seio deste repertório, Reportage amateur oferece provavelmente a ocorrência mais eufórica, talvez por constituir a manifestação mais prática e espontânea.

Traduzido do francês por Tatiana Monassa



Produção

Apoio

Correalização

Copatrocínio

Realização


Sugestão de Hotel em São Paulo, VEJA AQUI. Agradecimentos ao Ibis Hotels.


É expressamente proibida a utilização comercial ou não das imagens aqui disponibilizadas sem a autorização dos detentores de direito de imagem, sob as penalidades da lei. Essas imagens são provenientes do livro-catálogo "Godard inteiro ou o mundo em pedaços" e tem como detentoras s seguintes produtoras/ distribuidoras/ instituições: La Cinémathèque Francaise, Films de la Pléiade, Gaumont, Imovision, Latinstock, Marithé + Francois Girbaud, Magnum, Peripheria, Scala e Tamasa. A organização da mostra lamenta profundamente se, apesar de nossos esforços, porventura houver omissões à listagem anterior.
Comprometemo-nos a repara tais incidentes.

© 2015 HECO PRODUÇÕES
Todos os direitos reservados.

pratza