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Deux ou trois choses que je sais d’elle (Duas ou três coisas que eu sei dela)

França, 1966, cor, 35 mm, 90’



Tendo como pretexto a exposição, em forma descontínua e autorreflexiva, de fragmentos da vida cotidiana de Juliette, dona de casa, prostituta e moradora de um dos novos conjuntos habitacionais dos subúrbios de Paris, compõe-se um painel da nascente sociedade de consumo francesa.

Heidegger por uma criança (“Mamãe, o que é a linguagem?”); os bombardeios do Vietnã pelos circuitos de uma placa de rádio e fumaça de cigarro; o cosmos em uma xícara de café: várias cenas “godardianas” quase folclóricas, dessas que nos vêm à cabeça instantaneamente, são de Duas ou três coisas que eu sei dela. Humor e seriedade, alta e baixa cultura, esteticismo e política, sublime e prosaico em um caleidoscópio de provocações.

A montanha de livros na qual Bouvard e Pécuchet se afogam em citações erráticas prova que a ironia do cineasta não poupa a si mesmo. Visto por parte dos críticos da época – tanto os estetas como os conteudistas – como “confusionista”, Godard declarou que Duas ou três coisas “não é um filme, mas uma tentativa de filme”. Vindo do mago dos quiasmas, toda atenção é pouca ao jogo entre figura e fundo, no entendimento do que seja essa “tentativa”.

Em Duas ou três coisas, aprofundam-se as “rotas para a abstração”, como chamou Susan Sontag, criadas pelo autor por meio de brechas, elipses, rupturas e suturas de fragmentos ficcionais tensionados e refratados entre si e em relação a outros fragmentos de naturezas diversas. Desde Acossado (1959), Godard compôs seus filmes remodelando materiais: primeiro, formas cinematográficas (os gêneros e os traços de estilo do cinema clássico); depois, radicalizando a fragmentação e a heterogeneidade da matéria fílmica. Esse desdobramento da obra godardiana na primeira metade dos anos 1960 contribuirá, inclusive, para demarcar a divisão, ocorrida na redação dos Cahiers du cinéma, entre uma cinefilia baseada na mise-en-scène dos autores clássicos norte-americanos e aqueles que propunham um alargamento moderno das fronteiras da crítica, defendendo os filmes que faziam o mesmo movimento de abertura às contingências sociais e políticas da sociedade de consumo que se instalava na França gaullista e também às discussões culturais extracinematográficas do momento (nenhuma tão candente como a primazia do estruturalismo sobre o existencialismo, tópico fundamental para Duas ou três coisas).

Para além da constatação da onipresença em Duas ou três coisas das questões da linguagem e da reflexividade – propósito epistemológico com rendimento artístico –, é preciso compreender a relação entre elementos formais e conteúdos históricos para superar a visão de Godard como um mero colecionador cultural (“confusionista”, diziam os críticos) de formas e sintomas.

A evocação de Brecht já de início é crucial: trata-se de buscar mais luz para o palco social, centrando o foco na reconstrução, em escala nunca vista, dos subúrbios parisienses. Em uma vasta operação de conciliação política e grandes negócios, o cinturão vermelho da periferia parisiense, historicamente dominado por gestões de esquerda, passou por um “bota abaixo” geral, sendo substituído por grandes conjuntos e obras viárias, bases de uma nova sociabilidade de trabalho em serviços e vida privatizada, mediadas pelo consumo.

A prostituição de Juliette é uma caracterização geral da natureza dessa sociedade nascente: transformação de tudo e de todos em mercadoria. As rotas para a abstração – citações, monólogos, inserts, encontros e entrevistas – abertas pela narração no percurso da personagem exploram essa nova paisagem e situação humana.

Amalgamam-se aí lucidez semiológica, espírito de investigação da vida desses trabalhadores pobres e consumistas, e ainda a busca por uma contemplação existencial de tom baziniano – mesmo que, no lugar da montagem proibida, estejam agora a colagem e a ruptura, física e linguística, com a continuidade e com o pretenso testemunho indicial da imagem. Como demonstrou Ismail Xavier em sua análise da cena do lava-rápido (que revisita o Café da manhã do bebê, dos Lumiére, com um automóvel no centro das ações), agora tudo é linguagem; mas mesmo assim, lateja ali, no mundo das superfícies lisas e brilhantes do consumo, a presença humana.

Esse caráter duplo de cada fragmento, tensionado por sentidos divergentes, parece ser o princípio da dialética da composição do filme: as entrevistas evocam o cinema-verdade de Crônica de um verão (1961), mas pela franca encenação de trechos de uma enquete do Nouvel Observateur, os closes frontais de Juliette são ficcionalmente pasolinianos, mas sua permanência em tela nos dá um vislumbre documental da atriz Marina Vlady; as clássicas “vistas” de guindastes e autopistas são também Deserto vermelho, mas de um modo brechtianamente seco, sem o discreto pathos angustiado de Antonioni. Através da linguagem do cinema, as imagens da cidade-mercadoria revestem-se de história humana. E citações e comentários eruditos entram aí, ao rés do chão, colocados na boca e nas situações prosaicas desse mundo sem aura.

Mais do que metalinguagem, uma busca inquieta, reflexiva, sobre a justa distância, o modo de operação, dentro da linguagem, para evidenciar as coisas mesmas, situando o homem, em harmonia, entre elas: “objetivo de escritor e de pintor”, a um só tempo “poético e político”. Godard toma para o cinema moderno o programa de Francis Ponge, o poeta que faz falar as coisas por múltiplas, infinitas, descrições de fragmentos do mundo.

Deslocamentos constantes de sentidos já dados, pela experimentação de novas relações entre eles. Talvez Adorno pedisse a Godard as mesmas mediações que cobrava de Benjamin, mas Duas ou três coisas realiza a proposta adorniana do ensaio como experimentação conceitual.

Leandro Saraiva



Produção

Apoio

Correalização

Copatrocínio

Realização


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