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France tour détour deux enfants

França, 1979, cor, vídeo, 12 episódios de 25’).



Nesta segunda série televisiva, produzia para o canal Antenne 2, Godard e Miéville continuam seu percurso em direção a uma posição crítica da comunicação, tomando emprestado os códigos da gramática televisual – reportagens, chamadas de matéria, entrevistas, clipes –, criando uma espécie de antitelevisão.

Em 1977, Jean-Luc Godard e Anne-Marie Miéville começaram a gravar France/tour/détour/deux/enfants, uma série de doze episódios a ser exibida pela televisão francesa. Em alguns textos, a grafia do título da série é a que vemos acima, com as palavras separadas apenas por quatro barras inclinadas e sem espaços entre elas. Por se tratar de uma produção de Godard, essa idiossincrasia gráfica chama a atenção e deixa de ser um detalhe para tornar-se um indício que não se menospreza. Forçando-nos a caminhar aos solavancos ou a seguir de um só fôlego, as barras que separam cada uma das palavras bifurcam o ritmo da leitura, fazendo-a fluir e, ao mesmo tempo, atravancar. Tal grafia parece antecipar o que será visto no decorrer dos doze episódios que formam a série: a importância do fragmento, a decomposição do movimento, a parada sobre a imagem (l’arrêt sur l’image), a ideia de colagem e de edição videográfica.

Na primeira vez que se tem contato com France tour détour deux enfants (FTDDE), logo após alguns minutos decorridos do primeiro episódio, a impressão que fica é difícil de descrever; algo entre a surpresa e a sedução. Na tela, imagens de uma menina conversando com um adulto sobre questões filosóficas a propósito do tempo, do dia, da noite, do duplo, da existência. Trata-se apenas de uma conversa, um diálogo (que filosoficamente nos seduz) e, sobretudo, da duração de um momento. Tudo é de uma simplicidade quase obscena, daí a surpresa. Gravada em 1977-8, a série adapta livremente o célebre manual escolar do século XIX, Le tour de la France par deux enfants: devoir et patrie redigido em 1877 por Augustine Fouillée sob o pseudônimo G. Bruno. Concebida como uma espécie de folhetim, a série apresenta os diversos momentos da jornada diária de uma menininha e de um garoto, Camille e Arnaud. Cada episódio é construído como se fosse um programa jornalístico investigativo que ora visita a vida de Camille, ora a de Arnaud. As duas crianças nunca se encontram na tela, sempre protagonizando episódios separados. Além do elenco infantil, temos os personagens Robert Linard – o jornalista que vai a campo para investigar e questionar a vida das crianças – e uma dupla de apresentadores / comentaristas, Betty e Albert que, através dos corpos de um casal de atores, parecem personificar as próprias figuras de Godard e Miéville. No começo de cada episódio nos é apresentada uma reflexão, sob a forma de um pequeno ensaio de imagens, que introduz o tema a ser tratado (Desordem/Cálculo, Violência/Gramática, por exemplo). Após a introdução, vemos o jornalista Robert Linard visitar uma das crianças e conversar com ela. Essa parte acontece sem cortes, em um bloco contínuo de aproximadamente quinze minutos de duração. No fim, o casal de apresentadores comenta o que acabamos de assistir e chama a história final, um curto ensaio videográfico que, a cada programa, assume uma forma diferente: um plano-sequência de um homem solitário em um balcão de bar, uma montagem com imagens still pontuadas por reflexões de um texto em off, takes de uma manifestação de rua etc.

Esta é a segunda série televisiva produzida pela dupla Godard/Miéville. Um ano antes, em 1976, eles haviam produzido Six fois deux/Sur et sous la communication. À diferença da série anterior, Godard e Miéville optaram nesta por um formato mais doméstico, mais leve e manifestamente mais palatável ao telespectador médio. Os episódios são mais curtos (25 minutos cada) e feitos sob medida para a grade horária da televisão comercial, o que reforça a vontade dos autores de realizar uma produção capaz de alcançar um público mais amplo. No entanto, é FTDDE que parece anunciar uma inflexão na produção videográfica godardiana: além de trazer algo mais pictórico no tratamento imagético, a série aposta numa crítica menos didática e panfletária das imagens, mas não por isso menos experimental.

Percebe-se que FTDDE se vale do uso da paródia e da simulação das convenções da retórica televisiva. O dispositivo televisivo é manipulado e reconstruído por Godard e Miéville em uma espécie de pantomima televisiva. A militância e o didatismo da época do grupo Dziga Vertov são redimensionados e, mesmo ao lidar com questões centrais da política, da linguagem e da comunicação, Godard e Miéville assumem uma evidente sutileza formal. Ao produzir FTDDE, Godard e Miéville não estavam fazendo um filme militante ou escrevendo um ensaio crítico sobre os meios de comunicação e a televisão, mas estavam exercitando de dentro a crítica a esse meio, valendo-se de suas mesmas regras, clichês e convenções. Como nota o próprio Godard, ao incorporar o dispositivo televisivo a dupla de realizadores se transformaria numa espécie de vírus que, injetado junto à vacina, ajudaria o corpo a produzir seus anticorpos. Uma sutil e delicada tática de guerrilha.

Esse desejo de instaurar um elemento novo dentro da grade televisiva dialoga com as experiências de artistas da mesma época que, desde o final da década de sessenta, passam a ver na TV um lugar passível de ser povoado pela arte. Nam June Paik, Bill Viola, Walter de Maria, Richard Long, os grupos da Guerrilla television, o coletivo Ant Farm, todos estes atuantes nos Estados Unidos; e Wolf Vostell, Jean-Christophe Averty, Gerry Schum, Joseph Beuys e Aldo Tambellini, entre tantos outros, na Europa, representam uma produção artística que nasce a reboque da popularização da televisão nos lares das pessoas. Os primeiros gestos destes artistas em direção às tecnologias eletrônicas de captação de imagens acontecem, portanto, em um ambiente onde a presença abstrata do sinal televisivo e a presença concreta do aparelho televisor na casa das pessoas já estavam consolidadas, não só nos Estados Unidos como também na maior parte da Europa (lembrando apenas que, em 1955, 100% do território norte-americano já possuía cobertura do sinal televisivo e que, na França, esse índice seria alcançado em 1970). Na década de setenta, assistir televisão já era um hábito e aquele objeto retangular com uma tela de vidro por onde desfilavam imagens já era uma peça familiar incorporada à mobília da sala.

O que aquelas experiências televisuais pioneiras dos artistas citados revelavam era a possibilidade de desnudar as estruturas desse meio de comunicação de massa, mostrando seu avesso. Não seria mais possível, a partir dessa desconstrução da imagem televisiva, ver televisão como antes. Não por acaso, é em FTDDE que uma ideia cara a Godard e a Miéville aparece pela primeira vez: a de que é preciso decompor para recompor, desmontar o que já existe a fim de construir novos significados com as mesmas imagens já vistas tantas vezes.

Para que esse exercício de desconstrução e reconstrução acontecesse era preciso que ele tomasse corpo, ganhasse forma na própria estrutura dos episódios, em um claro exemplo da célebre expressão a “forma que pensa”. Entre tantos recursos criados por Godard e Miéville, podemos observar uma das atuações dessa forma pensante no modo pelo qual a dupla constrói a estrutura das vozes e dos sons presentes na série (as vozes dos personagens infantis, dos apresentadores de TV, dos narradores, dos ruídos ambientes, das canções utilizadas e das vozes de seus intérpretes, da “voz” dos realizadores que aparece escrita na tela e dos silêncios dos protagonistas), criando uma espécie de polimorfismo vocal que reforça um discurso titubeante que, ao evitar a univocidade, produz uma maneira mais relacional de lidar com a linguagem. As várias invenções formais em FTDDE criam uma estrutura discursiva polivalente que se caracteriza pela incorporação da sobreposição, do fora de quadro, do rascunho e do ensaio, elementos que se corporificam visualmente nas cintilações, na desaceleração e nas meias fusões das imagens e na própria condução das entrevistas.

FTDDE é um exercício que se mostra eficaz. Ao assistirmos aos episódios da série, mesmo quase quarenta anos depois de sua produção, temos a nítida sensação de que aquelas imagens não “caberiam” na grade horária de nenhum canal de televisão; de que se trata, de fato, da presença de um corpo estranho. Uma antitelevisão e aqui, o “anti” nos remete a “antídoto”, a “anticorpo”, a algo não natural. Não é à toa que, depois de finalizada, a série esperou dois anos até ser exibida, sendo submetida a uma espécie de geladeira pelo canal Antenne 2, uma atitude comum das emissoras de TV em relação às produções claramente não comerciais, sem potencial de grande público e sem lugar na grade horária do canal. Mesmo quando exibida, em abril de 1980, France tour détour foi totalmente descaracterizada: no lugar de um episódio semanal, sempre por volta das 20 horas, como era o desejo de Godard e Miéville, a série foi mostrada em três sábados, depois da meia-noite, com quatro episódios condensados em uma mesma exibição e isso tudo em um programa chamado Ciné-club, dedicado aos filmes cult. A série deixava, portanto, de ser série e passava a ser material para apreciação de iniciados e insones, em um horário fadado ao famoso “traço de audiência”.



Produção

Apoio

Correalização

Copatrocínio

Realização


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