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Notre musique (Nossa música)

França/Suíça, 2004, cor, 35mm, 80 min



Inferno, purgatório e paraíso: entre o fascínio trágico das imagens, um ator-autor entre as palavras e as ruínas e a beleza de uma realidade aprisionada. Pode a ficção nos salvar da realidade?

“Grandes homens não fazem revoluções, fazem bibliotecas”, diz o ator Godard, personagem de si mesmo em Nossa música. Baseado na Divina Comédia, o filme se divide em inferno, purgatório e paraíso. Ao eleger uma obra tão entranhada na cultura ocidental como sustentáculo do filme, Godard busca uma inspiração estrutural básica e uma espécie de onipresença filosófico-temática a partir da qual pode criar uma atmosfera dúbia, na qual se superpõem presente e passado, sagrado e profano. Tal articulação instaura no filme uma ordem metafísica, babélica e apocalíptica e ao mesmo tempo outra material e concreta que demarca também o terreno da militância política a partir da intrincada relação entre a ficção e o documentário estabelecida no filme. Essa dialética entre o registro profundamente meditativo e a atenção à práxis das relações humanas contemporâneas permite a Nossa música transcender um mero retorno à militância pró-Palestina de Godard. Ainda que ecoe filmes como Aqui e acolá, Nossa música dialoga com o autor Godard num sentido mais amplo; entre as ruínas da História e as centelhas de mais de cinquenta anos de trabalho, o cineasta tenta, ainda, pensar o homem, esse ser “terrível, aqui, com a sua mania de decapitar as pessoas”, conforme ouvimos na sequência.

No inferno, estamos no terreno do Godard ferrenho investigador das imagens, que nos submete a uma frenética montagem de imagens da violência: neste fluxo, coexistem cinema (Memory of the camps, Morte num beijo, Potemkin, Stagecoach etc), vídeo, televisão, ficção, documentário. Pixelizadas e arranhadas, violentas, sedutoras e terríveis, tais imagens fazem misturar-se à aspereza trágica das notas do piano de Hans Otte os ecos esfíngicos de uma das mais potentes indagações godardianas: imagem justa ou justo uma imagem?

O purgatório se passa em Sarajevo, onde Godard é um dos conferencistas dos Encontros Europeus do Livro. Aqui, a colagem frenética do inferno dá lugar a um passeio entre o documental e a ficção: o tempo é o presente, vemos escritores, jornalistas, estudantes e tradutores interpretarem a si próprios em circunstâncias reais, misturados a personagens imaginários. Enquanto conversam, observamos a paisagem urbana de uma Sarajevo ao mesmo tempo moderna e ainda destruída pelos recentes e sangrentos conflitos étnicos. O cenário não poderia ser mais apropriado: misto de ruína e modernidade, passado e presente, civilização e barbárie, a cidade parece a metáfora perfeita de como Godard percebe seu tempo presente e nele se insere. Qual o lugar da poesia no mundo, hoje? Se ao final do purgatório Godard tematiza a morte retomando a máxima rimbaldiana “eu é um outro”, a questão das relações entre a arte, a política e a alteridade se aprofundam neste bloco sob diferentes formas: do escritor palestino que se propõe a ser o poeta dos vencidos e relativiza as próprias ideias de vitória e derrota à própria problematização do lugar de onde fala o artista: pode o poeta falar de algo sobre o qual nada sabe? Homero não lutou as batalhas que cantou. Por outro lado, quem viveu as batalhes saberá cantá-las? Vencidos/vencedores, colonizados/colonizadores, artistas/combatentes, documentário/ficção, inferno/paraíso. campo/contracampo.

É quando vamos à conferência de Godard sobre o texto e a imagem. Em cena emblemática, o cineasta-ator reflete sobre a articulação básica da narrativa clássica: campo e contracampo. Godard desnuda o dispositivo de alienação dessa articulação utilizando fotos de Jejum de amor, de Howard Hawks. Para ele, ao enquadrar em posições iguais, em campo e contracampo, um homem e uma mulher; Hawks estaria demonstrando desconhecer as diferenças em jogo ao igualar o que é diferente. A linguagem traz algo de intrinsecamente conservador. É preciso, pois, saber ler as imagens. Ao utilizar Hawks – um de seus heróis de cinefilia – para construir seu parti pris artístico/analítico, Godard se funde nas figuras de cinéfilo/crítico/realizador/militante, numa espécie de antítese à problemática homeriana do artista/guerreiro. É desse lugar imbricado (e implicado) que abre as portas para recolocar a questão dos judeus versus palestinos na chave da ficção x documentário. Numa fotografia, os judeus vão ao mar em busca de sua fábula (ficção, campo); noutra, os palestinos vão em busca da morte (documentário, contracampo). “Se eles nos derrotarem na poesia, então é o fim”, diz Mahmoud Darwich. Chegamos finalmente a mais um axioma fundante de Nossa música: o real como incerteza e o imaginário como certeza. É Hamlet quem dá força, significação e vida ao castelo de Elsinore. “O princípio do cinema: ir até a luz e apontá-la para nossa noite. Nossa música”.

Em certo momento, Godard se cala de modo ambíguo quando perguntado se as novas e pequenas câmeras digitais salvarão o cinema. No paraíso de Nossa música vemos Olga – jovem cineasta judia morta em atentado em Jerusalém – numa praia cercada por fuzileiros navais norte-americanos. Nosso paraíso é vigiado. O real venceu a fábula. O que Nossa música quer nos dizer, talvez, é que não se trata de salvarmos o cinema, mas do cinema salvar-nos da realidade.

Rafael Ciccarini



Produção

Apoio

Correalização

Copatrocínio

Realização


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