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Potências do meio

Raymond Bellour

Potência da palavra (1988) é um filme industrial de 25 minutos, encomendado pela France Telecom a Jean-Luc Godard como parte de uma campanha publicitária. É muito pouco conhecido e pouco exibido, tanto no cinema quanto na televisão. Para além de retrospectivas, é preciso que haja eventos consagrados a Godard para que se decida eventualmente projetá-lo. Na França, ele recebeu alguns comentários críticos de autores apaixonados por Godard, como Jean-Louis Leutrat e Jacques Aumont, e de um cineasta que segue sendo crítico como Luc Moullet, para quem ele “consta entre os dez filmes da história do cinema”.

Podemos imaginar que no instante em que Godard, dentro de um escritório da France Telecom, segurou nas mãos uma foto de um céu salpicado de nuvens, ao mesmo tempo estampado e atravessado por um logotipo de geometria leve e dominadora, ele tenha tido a visão simultânea de duas imagens, e que isso tenha sido suficiente como ideia para um filme. De um lado, o logotipo torna-se o satélite sugerido por sua forma, com sua massa vibrante de palavras arremetendo-se de uma margem da Terra à outra. De outro, a imagem de um rosto de mulher vem preencher o céu no lugar do logotipo, metamorfoseando-se ao sabor do suposto movimento das nuvens, graças às transformações instantâneas que o vídeo favorece. Podemos imaginar também que, tendo essas duas imagens como base, tenha despontado em Godard a lembrança de duas histórias cujo cruzamento interceptaria obliquamente dois séculos para exprimir o destino das almas e dos corpos através da odisseia da matéria, de modo a reconquistar a potência única do cinema e de sua história na virtualidade dos novos poderes da imagem.

Godard disse e redisse que o cinema deve tudo à montagem, seu “beau souci”(é o título de um artigo seu de 1956). Em suas História(s) do cinema, ele disse também que o cinema era uma arte do século XIX consumada no decorrer do século XX. Sabemos que seu cinema é uma arte da colagem, feita de citações e empréstimos, podendo atingir a vertigem. Assim, em Potência da palavra, ele montou e entrecruzou duas histórias (cujos autores são mencionados de forma elíptica nos créditos), das quais tirou todos os diálogos do filme, mal retocando aqui e ali. De um lado, uma história fantástica de Edgar Allan Poe (The Power of Words, 1845), diálogo metafísico entre dois anjos, do qual o filme tira seu título; e de outro, um romance policial de James Cain (O destino bate à sua porta, The Postman Always Rings Twice, 1936), já levado ao cinema (Tay Garnett, 1945).

Associar deste modo literatura-filosofia e ficção popular para servir à tecnologia do telefone é criar o espaço mais justo para pensar a máquina-cinema projetada entre seu passado e seu futuro. Godard confronta, assim, o gênio em estado puro do profetismo romântico e as evidências codificadas do romanesco próprio ao grande cinema clássico americano, todos os dois permeados por suas irremediáveis nostalgias. E, fiel ao romantismo negro do escritor ao qual ele já tinha se alinhado pela leitura de The Oval Portrait em Vivre sa vie, ele acentua o efeito de nostalgia ao metamorfosear um dos dois anjos masculinos de Poe em mulher. Nesse jogo extremo de citações e empréstimos, o mais surpreendente é sem dúvida o fato de Godard ter encontrado nas primeiras linhas de um curto conto de ficção científica de Alfred Van Vogt as primeiras palavras do filme, no instante em que vemos uma película passar e repassar nas roletes de uma moviola – mesmo o vídeo já tendo condicionado de antemão todos os ritmos e mudanças de imagens. “Nas entranhas do planeta morto, um antigo mecanismo cansado estremeceu”. (trata-se do cinema). “Tubos emitindo uma luminosidade pálida e oscilante despertaram” (trata-se do vídeo). “Lentamente, como a contragosto, um comutador em ponto morto mudou de posição” (trata-se da difícil passagem do cinema ao vídeo, esses “irmãos inimigos”, “Abel e Caim”, como escreve Godard no quadro em Sauve qui peut (la vie)).

Potência da palavra fixa uma possibilidade e um espaço de metamorfose na obra de Godard. A possibilidade diz respeito em grande medida à aceleração das imagens, à conquista de novas velocidades, o que Godard julgava ainda fora de alcance no momento de France Tour Détour Deux Enfants et de Sauve qui peut, isto é, quando ele começou a realmente desacelerar a imagem, ou melhor, a decompô-la. Pois a aceleração deveria ter evidentemente informado a matéria dos corpos, participado de sua história. Assim, ele dizia em “Propos rompus” [Considerações partidas], publicado em 1980, um ano depois de Sauve qui peut: “Pensei em fazer ritmos acelerados e câmeras lentas normais, mas eu não sabia fazer na época. Achei que podíamos ter feito em alguns momentos, mas o acelerado é muito codificado na forma em que foi utilizado no cinema, apenas para provocar o riso, de certo modo. A não ser muito individualmente e se tivermos trabalhado juntos, não acho que o espectador – e nem eu mesmo enquanto espectador – seja capaz de ver uma imagem acelerada de outro modo que não como uma imagem acelerada; de vê-la como algo rápido ou talvez lento – que permitisse ver lentamente um movimento muito rápido que não vemos a olho nu –, quer dizer, de ver aquilo como um momento de desaceleração de algo extremamente rápido.” É precisamente o que Potência da palavra permite. Podemos imaginar ainda que, tão logo segurou nas mãos essa imagem de marca da France Telecom (com seu logotipo e seu céu) e pensou, graças a ela, em duas imagens e, deste modo, na associação de duas histórias, Godard sentiu abrir-se, com a própria ideia da tecnologia que lhe pediram para ilustrar, essa possibilidade de novas velocidades de imagem, até aí apenas desejada. Como se o dispositivo do telefone, a partir da troca material das vozes, favorecesse de saída uma aceleração quase “natural” das imagens, fundada numa nova dinâmica da montagem, não na aceleração propriamente dita – assim como os momentos arrancados da progressão convencional em France Tour Détour e em Sauve qui peut baseavam-se mais na decomposição do que na câmera lenta.

Potência da palavra atinge, assim, o ponto de intensidade mais alto de duas grandes operações formais fundamentais para a arte do cinema. De um lado, a realidade da relação entre as palavras e as imagens. De outro, a questão da alternância das imagens – no caso, a alternância como forma de narração e composição, que vai desde as formas gerais da narrativa até as pequenas unidades materiais do filme (ao mesmo tempo em que todas elas expressam aqui a diferença entre os sexos). Essas duas operações entrecruzam-se continuamente, cada uma instaurando e conduzindo a outra, e separamo-las apenas para poder exprimi-las. A força desse filme, ou desse vídeo, é uni-las e compelir-nos a tecer comentários de forma a destacar sem trégua tanto seus entrelaçamentos quanto suas repetições.

Alternâncias

Potência da palavra encena, portanto, em primeiro lugar, um casal ao telefone. Como vimos, a situação de The Postman Always Rings Twice de James Cain (e dos filmes que derivaram dele), foi retomada e retrabalhada. Uma alternância foi assim estabelecida, de saída, entre o homem e a mulher. Um segundo casal é introduzido em seguida. As sequências dedicadas a este são alternadas com as do primeiro casal (quase até o fim do filme). É assim instaurada uma articulação entre dois sistemas alternativos de extensão e de natureza diferentes. Um, limitado ao primeiro casal, é de natureza sobretudo narrativa; ele é alternativo no sentido estrito, já que seus termos estão ligados pela causalidade dos eventos (ele obedece à montagem alternada, ou sintagma alternante, na classificação das unidades sequenciais proposta por Christian Metz em sua “grande sintagmática do filme narrativo”). Já o segundo sistema se estende ao filme todo: ele consiste, efetivamente, na relação estabelecida entre o casal esfacelado pela cena de amor (a discussão conjugal, que prossegue através de múltiplas “cenas”) e o segundo casal, envolvido num diálogo sobre o funcionamento do universo. Entre os dois casais, que nada une no que tange à ação, o que se passa é, por outro lado, a situação clássica da montagem paralela (para Metz, o sintagma paralelo). D.W. Griffith forneceu exemplos famosos e insistentes dessas duas formas de alternância, que são verdadeiras fundações da expressão cinematográfica (de um lado todos os seus filmes baseados no suspense criado pelo desenvolvimento de ações convergentes e, de outro, o entrelaçamento das quatro idades da humanidade em Intolerância).

O maior interesse de Potência da palavra é a ânsia da alternância, a confusão e, portanto, a superação operada a partir de unidades que são, contudo, perfeitamente diferenciais; isto é, a partir dos planos, de um ponto de vista clássico. É o que sentimos desde o breve prólogo que precede a instauração da troca telefônica. Godard pega algumas imagens (um quadro de Max Ernst, nuvens, um quadro de Francis Bacon, etc.) e os alterna de acordo com entrelaçamentos variados, de forma muito rápida. Assim, a distância entre a alternância e a sobreimpressão de dois planos encontra-se de saída relativizada (graças à montagem digital), pois a velocidade de alternância torna possível a visão simultânea de duas imagens (em vídeo basta montar ao nível da semi-trama para ter fisicamente as duas imagens ao mesmo tempo, durante o tempo muito breve de confusão das duas tramas que compõem uma imagem). Por outro lado, essa alternância entre planos que tendem a se confundir apresenta imagens que já são elas mesmas constituídas por duas ou mais imagens superpostas. Acumulam-se, assim, alternâncias de diferentes níveis e de intensidades variáveis. Aí está o que acontece desde o primeiro telefonema, primeiro de forma ponderada, depois de forma bem mais violenta. Deste modo, operam-se confusões de imagens entre os dois amantes, desde o momento em que o filme busca materializar o trajeto de suas vozes, permitindo assimilar o transporte da comunicação telefônica tanto em sua intensidade quanto em seu percurso (figurado). Os trajetos percorridos ficcionalmente de uma casa a outra (na terra e nos céus) e as modalidades de transporte (os satélites) alternam-se constantemente com os corpos: eles vão do corpo emissor ao corpo receptor (do homem à mulher, a partir de quem a troca recomeça). Deste modo, os corpos alternam-se também entre si, na medida em que alternam-se com as imagens que eles atravessam, misturando-se com elas.



Essa forma matricial complexa e escalonada desdobra, assim, a função da alternância, até que as unidades que a tornam distinguível e sensível tornem-se duvidosas. Mas, ao mesmo tempo, a alternância parece suficientemente instituída como fundamento da expressão cinematográfica para que continue a ser para Godard, visivelmente e quase programaticamente, essa forma primeira que torna os conflitos do casal sensíveis, permite a confrontação teórica dos dois casais e associa entre si as matérias-ações. Este transbordamento-ultrapassagem da alternância é apresentado, como vimos, como lugar de passagem do cinema ao vídeo, anunciado logo nas primeiras palavras, quase nas primeiras imagens. Mas, ao mesmo tempo, a força de realidade que o cinema encarna – de modo sempre fundamental para Godard – permanece. Assim, é notável que essa alternância seja tão organicamente fundada na diferença entre os sexos, diferença que conforma o afeto entre estes. De um lado, uma discussão conjugal ao telefone, de ruptura e de amor, constitui a matéria narrativa do filme; de outro, essa matéria é revestida de um segundo sentido pelo diálogo entre a Srta. Oinos e o Sr. Agathos, os dois anjos. Transformando um dos anjos masculinos de Poe em uma jovem mulher, Godard reintroduz a diferença sexual inscrita no coração da genealogia romântica (em Poe como em tantos outros). Ele se situa assim nessa genealogia para sofrer seus efeitos – que ele leva ao extremo, ao sabor de uma dilatação cósmica implicada pelos diálogos dos anjos e pelas imagens que se seguem. Como se ele quisesse ao mesmo tempo distender essa distância entre os sexos e quebrá-la, des-simbolizar super-simbolizando, pelo fato de usar como base essa forma que ele leva quase ao infinito: a alternância própria ao cinema clássico, ao cruzamento dos jogos do casal e das tecnologias da velocidade e da visão, que incessantemente prolongam, redobram e metaforizam a realidade do dispositivo-cinema, de D.W. Griffith a Fritz Lang, por exemplo.

Digo Griffith e Lang para enfatizar a relação entre a força narrativa e a vontade de desejo sexualizado, tão essencial à própria formação das imagens para Godard. Mas, no que diz respeito aos entrecruzamentos de representações, máquinas e corpos, poderia ser igualmente Dziga Vertov e O homem da câmera, ou Stan Brakhage e Dog Star Man.

A diferença sexual conduzida pela alternância é, portanto, posta em jogo em termos de máquina, e a genealogia cinema-vídeo, implicada pelo uso do telefone-satélite, inscrita numa genealogia de máquinas. Se ficamos tão fascinados pela alternância dos trens, que leva a modulação do filme ao seu máximo de intensidade, no Griffith de The Lonedale Operator, por exemplo, ou no Lang de Os Espiões, é porque o trem, metáfora do dispositivo-cinema, foi assim utilizado para inscrever esse dispositivo no corpo do filme, e pôr em jogo a própria diferença sexual como condição e desdobramento do dispositivo. É este mesmo papel de mediador tecnológico que o telefone-satélite desempenha em Potência da palavra, entre os jogos do sexo e a figuração do universo.

Mas com duas diferenças. A primeira é que, passando com tal nitidez de uma tecnologia da velocidade visível (o trem) a uma tecnologia da velocidade invisível (o telefone), o cinema une-se ainda mais ao vídeo, que é seu duplo e o acompanha. Delineiam-se, assim, alguns traços de uma genealogia tecno-social na qual o cinema encontra-se reconquistado, ao mesmo tempo aquém e além do que ele inerentemente é, e cuja perspectiva encontra-se sedutoramente ilustrada nesta frase de Bill Viola, por exemplo: “a tecnologia do vídeo tirou muito da tecnologia da música eletrônica, que vem do telefone. Na verdade, os meios devem muito ao telefone, que reconduz tudo à comunicação.” Mas deve-se entender a comunicação no sentido que Godard sempre adotou, “Sobre e sob a comunicação” (era este o subtítulo de sua grande série televisiva Six fois deux, de 1976) – para fundá-la na expressão, trabalhando-a literalmente no corpo. A segunda diferença é que o cinema também entra, deste modo, na era do cinema definitivamente sonoro e falado, na medida em que a imagem e o som são agora concebidos tecnicamente (pelo menos em parte e teoricamente) como formados por uma mesma matéria e a partir de um mesmo sinal, com tudo o que isso implica, estética e filosoficamente.

Palavras e imagens

Quando Frank e Velma falam-se ao telefone, imagens transportam suas palavras. Palavras são enunciadas, levadas pelos seus equivalentes-imagens. Através do espaço, que conduz virtualmente da garagem do homem ao apartamento da mulher, imagens, passagens de imagens, são associadas a essas palavras. O transporte amoroso, atestado também na física das palavras, toma corpo na fisicalidade da imagem. Por outro lado, as palavras (ao menos algumas) são captadas num efeito de vibração, de eco – o primeiro “alô” de Frank, por exemplo, é repetido oito vezes, com um eco surdo que foge, assim, do misto de voz humana e máquina inumana. Neste transporte-eco, as imagens, carregadas através do espaço e inscrevendo-se no céu e no corpo da terra, tornam-se o correlato das palavras que se prolongam em vibrações sonoras. Poderíamos dizer que elas se inter-traduzem. Mas isto se dá mais pela relação que se estabelece entre suas respectivas intensidades do que pelo sentido (pelos sentidos) do que elas dizem e mostram. A existência e a força desse processo de encarnação das palavras em imagens é precisamente o que o texto de Poe reafirma nos diálogos entre os dois anjos, remontados por Godard. Assim, o Sr. Agathos diz à Srta. Oinos: “Você não sentiu seu espírito ser atravessado por alguns pensamentos relativos à potência material das palavras? Cada palavra não é um movimento criado no ar?” Isto é: também, e ao mesmo tempo, uma imagem.

Frente a essa insistência sobre a “Potência da palavra” (palavra valendo aqui, como fez Baudelaire, tradutor francês de Poe, para o “words” inglês, as palavras [mots]), reconhecemos facilmente uma evolução de Godard. Sua obra, como sabemos, se estabelece num divórcio (pelo menos aparente) entre as palavras [mots] e as imagens; ela busca fundar-se num privilégio quase cego da imagem, que ele não cessou de reafirmar e salientar compulsivamente em tantos de seus filmes. Dentre inúmeras declarações, retenhamos, por exemplo, a famosa passagem de La Chinoise sobre aqueles que “louvam os livros que confundem as palavras [mots] e as coisas” (ele visa certamente aí, em 1967, o livro célebre de Michel Foucault, lançado um ano antes). Pensemos também nas frases, confusas e já menos cortantes, que ele pronuncia pouco depois do início de Scénario du film Passion: “Eu não quis escrever o roteiro, eu quis vê-lo. No fim das contas, é uma história bastante terrível, porque remonta à Bíblia. Podemos ver a Lei, ou a Lei foi primeiramente vista, e depois Moisés escreveu-a em sua tábua? Eu acho que primeiramente nós vemos o mundo, e escrevemo-lo em seguida. E era preciso primeiro ver o mundo descrito por Passion, ver se ele existia, para poder filmá-lo.” Depois, vimos cristalizar-se em Godard uma reflexão sobre as mediações da linguagem, um reconhecimento da língua como universal da lei, ditando sua lei à presença da imagem, dominando a relação do sujeito com a imagem (pensemos, por exemplo, em tudo o que é tramado em Je vous salue Marie). Creio, porém, que se discutiu muito pouco em que medida essa problemática começou a realmente se constituir, em Godard, a partir do momento em que a palavra [mot] pode se fazer imagem, encarnar-se visualmente na própria imagem, ser assim trabalhada como imagem – portanto, a partir sobretudo da aparição do vídeo, em 1974-1975, com Ici et ailleurs e Numéro deux.

Assim, há em Numéro deux, em três momentos, uma sequência deliberadamente sexual (trata-se da sodomização da mulher pelo marido, cena vista pelos olhos de sua filhinha), que Godard escolhe tratar pelo sintetizador de vídeo, a fim de arrancá-la do risco do naturalismo e também de produzir uma figuração de tipo pictórico que permita a interpenetração do olhar e dos corpos. É notável que, na segunda ocorrência, ele escolha logo suceder essa cena por uma série de transformações de palavras iniciada pelo aparecimento da palavra MONTAGEM (nesse contexto, deve-se, então, entender tanto o agenciamento das imagens do filme quanto o exercício sexual dos corpos). Nesse trajeto que conduz, portanto, de MONTAGEM a FÁBRICA, por meio de diversas palavras destituídas de sentido em francês, as palavras realmente constituem imagens, como para participar da loucura própria à imagem, da qual elas buscam figurar um equivalente.

De um modo infinitamente mais romântico, é isto o que o transporte telefônico materializa de forma literal em Potência da palavra: ele é indissoluvelmente transporte material das palavras [mots] convertidas em imagens e paixão dos amantes, transporte amoroso. Assim, há um momento realmente extraordinário na primeira troca telefônica. No movimento de alternância que conduz do homem à mulher, percebemos, no jardim que cerca presumivelmente o prédio de Velma, uma forma indiscernível num primeiro momento (pelo menos para mim), oscilando entre uma árvore e um pássaro; e temos a impressão de que essa figura penetra o corpo da mulher de acordo com do batimento da alternância. Como se, para além da figuração pela pintura, de sua reprise e de sua narrativização, nos deparássemos diretamente com o mistério renovado de uma Anunciação, carregada explicitamente pelas palavras [mots] de amor e encarnada na própria matéria do cinema, seguindo a forma com que a palavra-imagem penetra o corpo.

Assim, essas duas grandes operações formais, a relação pensada entre as palavras e as imagens e a alternância generalizada das imagens são, aqui, ao mesmo tempo a condição uma da outra e ambas levadas a um ponto de incandescência. Deste modo, elas permitem sustentar uma variação infinita de possibilidades de imagens; e em particular de velocidades: da câmera lenta e da decomposição até a aceleração extrema. O recurso fundamental para isso é evidentemente o enlaçamento das histórias, na medida em que ele submete o romanesco da narrativa à meditação filosófica do diálogo, e inversamente. Justificando assim todas essas possibilidades de imagens, esse enlaçamento as conduz, juntas, a um registro que não tem propriamente um nome, mas que sentimos ser altamente essencial para a arte das imagens e dos sons. A inteira liberdade deixada pelo patrocinador ao cineasta numa situação limitada pela encomenda parece ter desempenhado um papel operatório. Pois na obra tão infinitamente variada de Godard, que parece ter saturado todos os gêneros, Potência da palavra é único em seu gênero, pela confusão absoluta que nele se produz entre meditação e ficção. Godard inventa aqui um poema-narrativa soberano, um ensaio sobre os dados imediatos e a memória do cinema-vídeo falado como futuro.

1990-2014

Traduzido do francês por Tatiana Monassa.



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