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Je vous salue, Marie (Eu lhe saúdo, Maria)

França, 1983, cor, 35mm, 72’



A jovem Maria ajuda o pai num posto de gasolina, namora um motorista de táxi e joga basquete. Virgem, ela descobre estar grávida. Um homem a informa de que ela espera o filho de Deus. Releitura provocativa do arquétipo da mãe de Jesus. Godard discute sagrado e profano, desejo e fé e corpo e espírito.

Na obra de Godard, os trabalhos da década de 1980 se caracterizam pelo retorno do cineasta a filmes de dramaturgia e personagem, relativamente distantes dos filmes políticos e ensaísticos dos anos 70 e também muito diferentes das estripulias formais e estilísticas dos 60. Se há o retorno à ficção e à presença de atores em interpretações brechtianas, a renovação se dá na maneira como Godard trabalha os planos, as atmosferas, a banda sonora e especialmente as abordagens. Je vous salue, Marie está no meio dessas novas experimentações, tendo sido lançado depois de Salve-se quem puder (A vida) (1979), Passion (1982) e Carmen (1982); e antes de Detetive (1984) e Rei Lear (1987). Eis um grupo único de filmes, que partem de conceitos decodificáveis (mitos da Bíblia, Shakespeare ou Bizet, gêneros como a comédia e o policial noir), porém apresentados fora de qualquer roupagem que os aprisione em elementos prontamente estabelecidos. Menos pela força expressiva e muito mais pelas controvérsias com a Igreja e políticos conservadores, Je vous salue, Marie é o mais conhecido do conjunto. Sua complexidade, porém, vai muito além das polêmicas gratuitas: Godard surge em plena forma, fissurando a ficção ao negar um registro hagiográfico à figura bíblica do título e propor questionamentos sobre espiritualidade, crença e as próprias escolhas estruturais do filme.

Je vous salue, Marie parte do arquétipo da mãe de Jesus para trazer ao contemporâneo questões e situações que se relacionam com esse mesmo contemporâneo. O uso recorrente da cartela “En ce temps là” (“Naquele tempo...”) situa o filme num passado indeterminado que é, na verdade, o próprio presente no qual a ação se desenrola. Somente na última fala, quando o anjo Gabriel faz a saudação (“Ave, Maria!”), é que o filme abertamente se conjuga ao mito que o inspirou. Antes disso, todo o tratamento está no corpo e na carne, no sacrifício e na dor, na incompreensão e na resignação: duplos universais, trazidos à baila como instantes ordinários do cotidiano de trabalhadores em alguma periferia da França. Neste filme Godard se aproxima, a partir do corpo da protagonista (Myriem Roussel) e de imagens de esmerada construção, de conceitos de Hannah Arendt para espírito (“o discurso metafórico conceitual, adequado para a atividade do pensamento”) e alma (“em sua enorme intensidade, muito melhor expressa num olhar, num som, num gesto, do que num discurso”). A guerra entre razão e emoção é tanto um clichê quanto uma constatação, na medida em que o cineasta problematiza os fundamentos do choque utilizando planos que mostram Roussel em espasmos e movimentos descontrolados, como se seu corpo não coubesse no quadro e precisasse extrapolar os limites impostos pelo cenário e pela câmera. “O que forma uma alma é sua dor. Eu sou uma alma prisioneira de um corpo”, sussurra ela em off. Os espasmos aparecem na tela enquanto são ouvidos, fora de campo, sons de pássaros, vento e chuva, como se natureza gritasse com o desespero do corpo – ou o corpo fosse, ele mesmo, a natureza a gritar.

Entre a gravidez num corpo virgem (ecos do sagrado) e a nudez e o prazer interrompido (sombras do profano), o filme dá a ver a força de uma Maria que tanto renega quanto assume o destino de dar à luz ao filho de Deus. A religiosidade está nos gestos e na poética do filme, nos planos de céu azul e nos contra-plongées de rostos recortados pelas nuvens e especialmente no corpo sacralizado de Maria: profanado pelo desejo de José e exposto pela câmera de Godard ao vislumbre voyeurista do espectador, esse corpo deve ser protegido (a pancadas, se necessário) pelo anjo Gabriel. A disjunção entre corpo e desejo mantém a presença, a postura e os movimentos de Maria no âmbito do sagrado, enquanto o filme como objeto de criação transita pelo profano por meio do enquadramento das cenas e dos movimentos e da nudez de Myriem Roussel.

A “pedagogia godardiana” é reinventada: se nos anos 1970 os filmes absorviam a revolução maoísta e os discursos vinham pela articulação de uma forma gritada e expansiva, agora a autorreferência está no arquétipo, na construção de uma personagem tipicamente ficcional cujo propósito é combater a própria ficção para resgatá-la e oferecê-la ao mundo concreto (segundo Serge Daney, “O cinema de Godard é uma dolorosa meditação sobre o tema da restituição, melhor: da reparação”). O movimento de “resgatar as imagens” está presente no filme já no uso do formato 1:33 no quadro, forçando a mise en scène a se adequar a espaços exíguos (conflitos e embates físicos ou orais entre os personagens) e à natureza expansiva (planos exteriores de lagos, folhagens, chuva e afins). Ao comentar o filme em 1985, Godard revelou que o intento não era o de achar a imagem essencial, mas deixar que a essência surgisse da imagem captada, a centralidade como consequência do ato de filmar: “O enquadramento é um resultado. E é algo de que eu me livrei, afinal. Isso quer dizer que o centro, nos momentos bons, estará sempre no mesmo lugar”.

Marcelo Miranda



Produção

Apoio

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