Portal Brasileiro de Cinema / Godard APRESENTAÇÃO   ENSAIOS    FILMOGRAFIA COMENTADA    FILMOGRAFIA    FICHA TÉCNICA    PROGRAMAÇÃO    CONTATO

APRESENTAÇÃO


ENSAIOS


FILMOGRAFIA COMENTADA


FILMOGRAFIA


SOBRE OS AUTORES


FICHA TÉCNICA


PROGRAMAÇÃO


COBERTURA DA IMPRENSA


CONTATO


Jean-Luc Godard e Glauber Rocha : um diálogo a meio caminho

Mateus Araújo

I. Caminhos convergentes: cinefilia, política, história

Dos maiores cineastas da segunda metade do século XX, Godard e Glauber Rocha são talvez os que levaram mais longe, em seus trajetos, a conjugação de cinefilia e política. Em ambos, estas duas dimensões da experiência aparecem intimamente ligadas: o cinema e sua história lhes ofereceram uma forma de compreensão política do mundo, e sua relação com o trabalho de outros cineastas se articulou sempre, de algum modo, com o olhar que seus filmes lançavam ao mundo. Sem forçar muito a mão, podemos fixar quatro momentos em que a própria evolução desta articulação no trabalho de cada um encontra paralelos no do outro, num espectro que vai, grosso modo, de uma postura cinefílica inicial até uma reflexão cinematográfica madura sobre a história do século XX, passando por intervenções políticas no cinema (em fins dos anos 60) e na televisão (em fins dos anos 70).

Precedidos por uma atividade regular de crítica cinematográfica, os primeiros filmes de ambos (mais diretamente políticos em Glauber do que em Godard), na passagem dos anos 50 aos 60, definem seu estilo e seu ponto de vista sobre o mundo num diálogo intenso com outros cineastas. No fim dos anos 60, o engajamento político de ambos se traduz em intervenções fílmicas face à atualidade política nos seus respectivos países e em projetos de natureza política noutros países. Os eventos de 1968 na França e no Brasil suscitam respostas no calor da hora: Godard, que acabara de responder à guerra do Vietnam em seu episódio ("Camera-oeil") para o filme coletivo Loin du Vietnam (1967), filma alguns dos Ciné-tracts sobre os eventos do Maio francês, aos quais volta em Un film comme les autres (1968); Glauber, que acabara de responder em Terra em Transe ao golpe militar de 1964, filma no centro do Rio uma passeata de 1968, cujas imagens sem montagem nem som constituem hoje uma espécie de apêndice à sua filmografia, sobriamente batizado de 1968. Logo depois, Godard encadeia, sozinho, em parcerias ou no grupo Dziga Vertov, uma série de filmes políticos sobre a atualidade na Inglaterra (One plus One, 1968 e British sounds, 1969), nos EUA (One american movie, filmado em novembro de 1968 com D. Pennebaker e R. Leacock e montado pelos dois sob o título One P. M. em 1971, após o abandono de Godard), na Tchecoslováquia (Pravda, 1969), na Itália (Luttes en Italie, 1970) e na Palestina (Jusqu'à la victoire, filmado em 1970, interrompido e finalizado em 1974 com Anne-Marie Miéville sob o título Ici et ailleurs), enquanto Glauber, antes de trabalhar na Espanha e em Cuba, vai ao Congo Brazzaville filmar, em Der Leone have sept cabeças (1970), a luta dos africanos contra o colonialismo. Anos mais tarde, depois de trabalhos renovadores de Godard para a TV francesa (as séries com Miéville Six fois deux, de 1976, e France tour détour deux enfants, de 1979) e de Glauber para a brasileira (quadros no Programa Abertura, de 1979)2, o impulso de intervenção política imediata dá lugar a uma reflexão mais serena de ambos sobre a relação entre o cinema e o século XX. A abordagem da história do cinema se conjuga com uma meditação sobre o Século XX no ciclo das Histoire(s) du cinéma (1988-98) de Godard, mas também nas páginas do Século do Cinema de Glauber, publicado postumamente em 1983.

Assim resumidos em suas linhas gerais, os dois trajetos parecem convergir, guardadas as diferenças de contexto e escala temporal (Glauber morreu aos 42 anos, com 20 de carreira; Godard tem hoje 85 anos, e 60 de carreira). Eles desenham também um movimento paralelo de progressiva auto-exposição dos dois cineastas, que revelam uma consciência crescente de sua própria situação ideológica, explicitando cada vez mais o lugar de onde falam nos filmes, recorrendo ao monólogo over em primeira pessoa e emprestando seu corpo à imagem e sua voz ao som de alguns deles para desempenharem seu próprio papel – ou por vezes, no caso de Godard, o de personagens alegóricos que ele encarna, dos figurantes duvidosos entrevistos ludicamente (à la Hitchcock) nos anos 504 às figuras do «Idiota» melancólico surgido nos anos 805 e do guardião da memória do cinema, dos anos 90 em diante, qual um Sócrates interrogando o sentido do seu centenário6, um Borges explorando os labirintos da sua História7 ou um Deus enunciando um Juízo Final das imagens e dos sons8.

Estas convergências nos convidam a examinar as relações travadas pelos dois cineastas, que nunca foram, que eu saiba, discutidas em profundidade9. O dossiê parece assimétrico. Glauber tomou contato com o cinema de Godard desde 1961 ou 1962. De 1963 em diante, em textos, entrevistas e cartas, ele não cessou de se pronunciar sobre Godard (cujo trabalho acompanhou com atenção e admiração) e sobre o que alguns de seus próprios filmes teriam incorporado do cineasta franco-suíço10, apesar de nunca o citarem diretamente. Godard devia estar a par da recepção dos filmes de Glauber na França desde 1964 (pois os Cahiers du Cinéma foram peça-chave no processo) e deve tê-los visto quando do seu lançamento em Paris entre 1967 e 1971, mas quase nunca os menciona em seus textos, embora três de seus filmes tragam referências explícitas a Glauber: Le Gai savoir (1968), Vent d'Est (1969) e o capítulo 1-B ("Une histoire seule") das Histoire(s) du Cinéma. Feitas as contas, Godard parece mais presente no mundo de Glauber do que o inverso.

Vou me concentrar aqui num momento, em fins dos anos 60, em que os dois trajetos se cruzam e os cineastas estabelecem um diálogo direto e uma breve colaboração no longa Vent d'est (1969), o primeiro da parceria de Godard com Jean-Pierre Gorin sob a assinatura do Grupo Dziga Vertov, ali inaugurado. Se a relação entre Godard e Glauber tem várias facetas e pode ser abordada de vários ângulos, o único momento no cinema de ambos em que ela é literalmente encenada segue sendo um breve plano de 2 minutos no meio deste filme, em que Glauber aparece, a pedido de Godard e Gorin, indicando dois caminhos possíveis para o cinema político de então. Nas três seções que seguem, volto ao filme, discutindo primeiro a situação real do diálogo entre Glauber e Godard / Gorin que precedeu sua colaboração e analisando em seguida a cena de Glauber na encruzilhada, para avaliá-la na conclusão enquanto representação alegórica daquele diálogo, enquanto parte dele e enquanto vestígio de uma fecundação mútua entre os cineastas. O confronto entre o diálogo real dos cineastas em 1968-9 e seu diálogo encenado em 1969 nos fornece, de resto, um exemplo interessante da política da representação promovida pelo filme, que abole a representação tradicional de uma narrativa clássica, mas não uma representação das relações de poder entre os agentes históricos nele designados.

II. Antes do Vento: cineclastia marxista x pragmatismo terceiro-mundista

Esta breve colaboração entre Glauber e Godard (& Gorin) veio no momento de maior interesse de um pelo trabalho do outro. Embora não tivesse se pronunciado sobre Glauber em seus textos críticos até então (nem volte a fazê-lo para valer mais tarde), Godard já mencionara seu nome, junto com os de Bertolucci e Straub, numa fala do personagem Emile Rousseau (J.-P. Léaud), ao fim do Gai savoir, realizado entre dezembro de 1967 e junho de 1968. Léaud se despedia de Patricia Lumumba (Juliet Berto), com quem empreendera ao longo do filme um exercício de análise ideológica das imagens que recolhiam em Paris. Na despedida, um contava ao outro o que faria depois daquela experiência, o contexto e o tom das menções de Léaud ao trabalho de Bertolucci na Itália, Glauber no Brasil e Straub na Alemanha deixando clara a admiração que estes cineastas inspiravam – tanto no seu personagem quanto em Godard, do qual ele se fazia ali um porta-voz. Filmada em janeiro de 1968, aquela fala de Léaud devia estar reagindo não só a Deus e o Diabo (estreado em Paris em 1967) e aos primeiros textos de Glauber traduzidos em francês11, como também a Terra em Transe, que Godard já devia ter visto em Paris em 10 ou 11/11/67 (na "seconde semaine des Cahiers du Cinéma"), antes mesmo de sua estréia comercial no cinema Le Racine em 17/1/68. Em entrevista recente a Jane de Almeida, Gorin, que conheceu Godard em 1967 e acompanhou parte das filmagens do Gai savoir como um conselheiro ideológico informal (assim como já fizera por La Chinoise), conta ter visto Terra em Transe "umas trinta vezes seguidas no espaço de dez dias" no início de 1968, antes de ficar amigo de Glauber meses mais tarde12.

O interesse de Glauber por Godard remonta a 1961-2, quando viu Acossado pela primeira vez, no Rio ou na Europa. Na introdução à Revisão crítica do cinema brasileiro (1963), texto programático sobre sua concepção do autor no cinema, Godard ganha destaque no panteão dos autores modernos nas quatro vezes em que é citado (cf. RCCB, p.35, 36, 37 e 40), Acossado aparecendo como exemplo de liberdade e anticonformismo. Nos seis anos que separam estas referências e o episódio Vento do Leste, o interesse e a admiração de Glauber por Godard só crescem. Eles se traduzem num texto escrito em 1965 (não publicado na época) sobre Alphaville e sobretudo no longo ensaio entusiástico "Você gosta de Jean-Luc Godard? (se não, está por fora)" publicado em 1967 e sucedido por declarações superlativas sobre Godard. Se os textos anteriores de Glauber já revelavam respeito ao apresentá-lo como um dos "mais legítimos representantes da Nouvelle Vague" (1966, in SC, p.186), um dos "grandes autores de hoje" (1964, in RCN, p.63) ou um "cineasta tricontinental [...] e político" exemplar (1967, in RCN, 109), seus elogios posteriores se tornam ainda mais enfáticos. Depois de se referir a Weekend como "o mais importante filme da história do cinema" (Correio da Manhã, 18/12/1967), Glauber fala de Godard, em textos de maio a julho de 1969 (quase contemporâneos das filmagens de Vento do Leste), como "o cineasta mais importante de hoje", "o maior cineasta desde que Eisenstein morreu" ou "o maior cineasta desde Eisenstein" (RCN, p. 192, 164 e 221), antes de notar no já citado "O último escândalo..." de 1970 que "a glória de ser o maior cineasta depois de Eisenstein lhe pesa sobre os ombros de burguês suíço anarcomoralista" (in SC, p.317) e de reafirmar em maio de 1971, numa carta a Alfredo Guevara, sua certeza de que "Godard é o maior criador revolucionário do momento, com todos os erros teóricos que comete" (CM, p.411).

A formulação de tais elogios não deixa de sugerir um curioso descompasso entre os dois cineastas. Glauber estabelece uma linhagem de Eisenstein a Godard, se não de projeto estético, ao menos de grandeza. Sem nunca qualificar Godard de eisensteineano (o que seria falso), Glauber diz que ele é o maior desde Eisenstein, ou depois dele. O privilégio de Eisenstein no esquema de Glauber não é indiferente, pois é reiterado no momento mesmo em que Godard e Gorin elegiam Dziga Vertov como o nome próprio capaz de condensar seu projeto revolucionário, em detrimento de Eisenstein, atacado em Vento do Leste como cineasta revisionista. Glauber, por seu turno, permanece fiel a Eisenstein, que é talvez o cineasta que ele mais admirou. Além disso, as ressonâncias românticas dos elogios de Glauber a Godard tendem a reforçar sua aura de criador genial, num momento em que Godard, em plena radicalização ideológica, se esforçava exatamente para dissolvê-la, aderindo a projetos coletivos (como Loin du Vietnam e Ciné-tracts), apostando na criação do grupo Dziga Vertov com Gorin e rejeitando mais do que nunca as noções tradicionais de "autor" e "obra". Num movimento inverso, Glauber capitalizava taticamente seu próprio prestígio internacional (que crescia após Deus e o Diabo e Terra em Transe, e culminava com a recepção entusiástica do Dragão na Europa) para caucionar a continuidade de sua atividade de cineasta, legitimar culturalmente o cinema novo e se proteger de eventuais investidas da repressão militar que recrudescia no Brasil.

As diferenças de posição que estes detalhes permitem entrever vieram talvez à tona nas discussões sobre o cinema político travadas pelos dois cineastas, cujo primeiro contato pessoal deve remontar pelo menos a 1967, senão a 1964 em Paris, embora Gorin creia tê-los apresentado (neste caso, entre fins de 1967 e inícios de 1969). Além da data exata do seu encontro, não sabemos bem o teor exato de suas discussões e divergências, aludidas por Glauber mas não por Godard, que nunca se pronunciou a respeito. Segundo algumas evocações paralelas de Glauber (entre 1969 e 1978)13, um Godard em crise existencial e ideológica teria vindo lhe dizer que os cineastas brasileiros deveriam se lançar de vez num cinema revolucionário para destruir o cinema. Glauber não endossa tal programa por julgá-lo contrário à sua tarefa principal do momento, a de contribuir para a construção de um cinema do terceiro mundo: "Falei [...] com Godard, que me disse: 'Vocês, brasileiros, devem destruir o cinema'. Eu não concordo. Vocês, na França, na Itália, podem destruí-lo. Mas nós ainda o estamos construindo em todos os níveis, na linguagem, na estética, na técnica..." (jul.-ago. 1969, in RCN, 2004, p.201-2). Este embate entre a cineclastia marxista do Godard de então e o pragmatismo terceiro-mundista da reação de Glauber não é mencionado no depoimento recente de Gorin (eminência parda no processo de radicalização ideológica de Godard) sobre seu encontro e seu diálogo com Glauber em 1968-9. Gorin evoca "um tresloucado curso intensivo sobre o tropicalismo"14 ministrado informalmente por Glauber em suas longas perambulações noite adentro pelas ruas de Paris.

Estas conversas de Glauber com Godard e com Gorin, ao lado do respeito que seu trabalho lhes inspirava, motivou-os, quando do seu reencontro em Roma em 1969, a convidá-lo para participar do Vento do Leste, filmado na Itália em junho-julho, e montado em outubro, de 1969. Segundo Gorin, foi ele e não Godard quem convidou Glauber para o filme e concebeu a cena da encruzilhada. Segundo Glauber, que não menciona Gorin em seu depoimento, foi Godard quem lhe convidou a atuar como ator naquela cena e mesmo a filmar uma outra (deste segundo convite, Glauber declinou). Mas ambos os depoimentos fazem desta participação de Glauber no filme um desdobramento imediato do seu diálogo de então com o(s) autor(es). Isto fica claro nas evocações da filmagem por Glauber: "Godard [...] me critica dizendo que tenho mentalidade de produtor, depois me pede para ajudá-lo a destruir o cinema, aí eu digo para ele que estou em outra, que meu negócio é construir o cinema no Brasil e no Terceiro Mundo, então ele me pede para fazer um papel no filme e depois me pergunta se quero filmar um plano do Vento do Leste e eu que sou malandro e tenho desconfiômetro digo para ele maneirar pois estou ali apenas na paquera e não sou gaiato para me meter no folclore coletivo dos gigolôs do inesquecível Maio francês" (SC, p.317-8); "por fim Godard compreendeu também [minha divergência], e cheguei a filmar como ator um plano para seu filme, no qual tenho muita fé. Uma inversão estrutural do gênero western pode ser muito interessante e útil para nós" (RCN, p.152).


(Fig. 1: GR esboçando o gesto da cena de Vent d’Est
Fig. 2: GR e JLG no local da cena de Vent d’Est)

Recomposta brevemente a gênese da colaboração de Glauber na cena do Vento do Leste, passemos então à sua análise, discutindo-a como uma espécie de "laboratório" alegórico das relações entre Godard-Gorin e Glauber na luta comum pela transformação radical do cinema mundial, uns buscando um contato concreto com um artista revolucionário do terceiro-mundo para escapar aos impasses do cinema ocupado pelo imperialismo, o outro buscando legitimar o cinema do terceiro mundo no seio mesmo do cinema mundial ocupado.

III. Um Cristo e duas moças na encruzilhada

Em seus primeiros 50 minutos, Vent d'est traz vinte e poucas cenas filmadas em exteriores italianos (rurais) no verão. Em geral plácidas e calmas, as imagens mostram um grupo de seis personagens nunca nomeados mas cuja caracterização (figurinos, gestos, falas) e cuja interação em paisagens amplas tendem a evocar figuras e situações de um Western. Em constante desacordo com a imagem, a banda sonora complexa acolhe várias vozes over, em francês ou italiano, falando sobretudo das lutas operárias, de modo a trazê-las também para a ficção. Assim, três atores evocam um soldado Yankee, uma mocinha burguesa e um índio vindos do Western, e os três outros evocam um casal de jovens revolucionários e um personagem que a banda sonora sugere ser um líder sindical. Conjugando estes dois universos em dois gêneros igualmente distintos (uma narrativa de Western evocada sobretudo nas imagens, um ensaio sobre a greve e as lutas operárias esboçado sobretudo na banda sonora), o filme avança de modo descontínuo, mostrando os personagens em separado, em grupos de 2 ou 3 ou todos juntos, sugerindo assim um confronto entre, de um lado, o Yankee, o líder sindical e a moça burguesa e, de outro, o índio e o casal de revolucionários. Pontuando o fluxo, algumas cenas mostram as próprias filmagens (atores se maquiando, equipe discutindo como usar uma imagem de Stalin, etc), muitos inserts trazem cartazes anunciando blocos do filme, mostrando fotos rabiscadas ou repetindo slogans políticos, sem falar em pontas pretas, capas de tablóides, livros e fotos políticas. No som, as vozes femininas predominam, sobretudo uma (dita "revolucionária" na transcrição da banda sonora)15, que comenta em over todo o fluxo das imagens e dos sons, pontuando toda esta primeira parte como um fio reflexivo em meio aos embates entre revisionistas e revolucionários, às evocações de lutas operárias e episódios históricos (antigos ou recentes) e às palavras de ordem.

O comentário feminino em over se torna ainda mais importante na segunda parte do filme, mais ensaística, que começa aos 49' e se organiza como uma (auto)crítica à primeira, num procedimento recorrente nos filmes de Godard desde Le Gai savoir até pelo menos a série France tour détour (1979), passando também por Pravda, Lutas na Itália e Tout va Bien e Six fois deux. Agora, aquela voz se dirige a um "tu" que estaria fazendo o filme, para criticá-lo e comentar sua démarche, o que soa estranho, pois o filme é de Godard e de Gorin. Aos poucos, vamos inferindo que ela se dirige a Godard e, mais importante, que ela parece exprimir a posição e o discurso de Gorin, explicitando assim na textura mesma do filme um debate interno ao grupo Dziga Vertov que poderíamos definir como uma autocrítica dialógica. Que este diálogo entre Godard e Gorin passe pela mediação de vozes ou personagens femininos não surpreende, pois Godard já instituíra em seus filmes uma paridade das vozes num constante diálogo masculino-feminino. Le Gai savoir tornava este gesto explícito, e os filmes seguintes o sistematizavam, especialmente através da dupla Vladimir e Rosa, que aparece em Pravda antes de reaparecer no filme homônimo, interpretada por Godard e Gorin.

Abrindo a segunda parte, a voz feminina cobra de Godard um exame da primeira, e encadeia uma série de críticas severas à insuficiência do seu método e da sua démarche desvinculada das massas e das lutas reais. Diante de imagens documentais que irrompem no filme pela primeira vez, a voz acusa, implacável: "você não pesquisa... você faz sociologia burguesa... você faz cinema-verdade... teu cinema é o das televisões burguesas e seus aliados revisionistas... você nem chegou a pensar tua situação concreta. De onde você parte? Não há cinema acima da luta de classes, a classe dominante cria as imagens dominantes que reforçam sua dominação. Quer trabalhe para Nixon-Paramount (ou suas filiais imperialistas na França, na Itália, na Alemanha) ou para Brejnev-Mosfilm (e seus agentes revisionistas no leste), você trabalha sempre para o mesmo patrão, que encomenda sempre o mesmo filme, que chamamos, não por acaso, de Western". Neste momento, a voz feminina anuncia um breve exercício de teoria. Nele, a voz esboça um esquema geopolítico do cinema mundial, dividindo-o em três pólos que ela critica severamente: 1) Hollywood, Nixon-Paramount; 2) Brejnev-Mosfilm e suas zonas de influência (Argélia, Cuba); 3) Underground. Estes três pólos aparecem como caminhos sem saída, inimigos ou obstáculos para a emergência de um cinema materialista.

É exatamente neste momento, e sem transições, que aparece a breve cena de Glauber (57’–59’). Seu contexto imediato no filme é portanto a dura autocrítica de Godard e sua crítica severa a três grandes modelos de um cinema ocidental comprometido (ou compatível) com o imperialismo e emblematizado pelo Western. Ao surgir no filme, Glauber parece anunciar uma quarta via, o cinema do terceiro mundo, de modo a completar uma transposição cênica, mais precisa, de um esquema já presente no manifesto de Godard pelos dois ou três Vietnãs no cinema, de 1967. Escrito por ocasião da Chinoise, e ecoando a divisa "criar dois, três... muitos Vietnãs", que Che Guevara usara no título de seu artigo para a revista Tricontinental de abril de 1967, tal manifesto dizia: "Cinquenta anos depois da revolução de Outubro, o cinema americano reina sobre o cinema mundial. Não há muito a acrescentar a este fato, salvo que, em nossa modesta escala, devemos também criar dois ou três Vietnãs no seio do imenso império Hollywood – Cinecittà – Mosfilms – Pinewood – etc. E devemos fazê-lo tanto economica quanto esteticamente, ou seja, lutando em duas frentes, criando cinemas nacionais, livres, irmãos, camaradas e amigos"16. A transposição cênica no Vento do Leste acrescenta ao manifesto de 1967 o Underground como subproduto ou variante do cinema imperialista e elege o terceiro mundo como representante dos cinemas nacionais, mas o movimento geral do argumento é o mesmo: ataque ao cinema imperialista em suas várias versões seguido de um apelo a um outro cinema. Glauber encarnará por um instante esta promessa de um outro cinema. Passemos à sua cena:

Plano geral fixo de paisagem campestre atravessada por uma estradinha de terra em forma de "V", em cujo vértice, no centro do quadro, vemos Glauber de corpo inteiro, de frente para a câmera [Fig. 3]. De calça e camisa compridas, Glauber tem os braços abertos, como se sinalizasse desde já os caminhos que apontará logo depois, mas evocando ao mesmo tempo a figura do Cristo crucificado (sem a cruz) e um gesto expansivo muito recorrente em personagens de seus filmes, dentre os quais o primeiro a nos vir à mente é o Corisco no fim de Deus e o Diabo, de braços também abertos [Fig. 4] e gritando ao morrer "mais fortes são os poderes do povo!".


Fig. 3: Glauber na encruzilhada em Vent d’Est Fig. 4: Morte crística de Corisco em Deus e o Diabo

Glauber canta em português e a capella, desde o início do plano, o refrão levemente modificado da canção Divino maravilhoso de Caetano Veloso e Gilberto Gil, que fica assim: “Atenção! É preciso estar atento e forte / não temos tempo de temer a morte / É preciso estar atento e forte / não temos tempo de temer a morte". Sobreposto ao canto de Glauber um pouco depois do seu começo, reaparece o comentário over feminino, dirigindo-se em francês ao "tu" que inferimos designar Godard: “Você dizia no início [do filme]: um caminho que a história das lutas revolucionárias nos ensinou a conhecer. Mas onde ele está? Na frente? Atrás? À direita? À esquerda? E Como? Então, você mudou de método. Você perguntou ao cinema do terceiro mundo em que pé ele estava". Enquanto Glauber canta e a voz over feminina se dirige a Godard, uma outra moça, interpretada por Isabel Pons (namorada de Gorin na época), grávida, jovem e bonita, trazendo nas costas uma câmera de 16 mm, surge no fundo do quadro [Fig. 5] e avança rumo à encruzilhada em que Glauber se postou [Fig. 6].


(Fig. 5 Fig. 6)

Lá pelas tantas, logo que o comentário over diz que Godard foi perguntar ao cinema do terceiro mundo em que pé ele estava, a imagem parece ecoá-lo, ao mostrar Isabel (alter-ego de Godard?) perguntando a Glauber (encarnação do "cinema do terceiro mundo"?) em francês: "Me desculpe, camarada, atrapalhá-lo em sua luta de classes muito importante, mas [qual é] a direção do cinema político?". Enquanto ela fala, Glauber não levanta o rosto nem reage à pergunta [Fig. 7]. Um segundo depois, ele vira o rosto na direção dela, para apontar atrás dela (sem olhá-la nos olhos) o caminho do cinema da aventura [Fig. 8], antes de se virar para o outro lado e apontar o caminho do cinema do terceiro mundo [Fig. 9].


(Fig. 7 Fig. 8)

Os gestos de Glauber, que parecem ignorá-la, se associam ao seu monólogo em português sobre aqueles dois caminhos: “Para lá, é o cinema desconhecido, o cinema da aventura. Eh... pra aqui, é o cinema do terceiro mundo, é um cinema perigoso, divino e maravilhoso, [...] é um cinema desconhecido, é o cinema bola-bola de Miguel Borges, é um cinema perigoso, divino e maravilhoso, é um cinema que vai construir tudo, a técnica, as casas de projeção, a distribuição, os técnicos, os trezentos cineastas por ano para fazer 600 filmes para todo o terceiro mundo, é um cinema perigoso, divino e maravilhoso, é o cinema da tecnologia que vai se incorporar à [palavra inaudível] para a alfabetização das massas no terceiro mundo, é um cinema perigoso, divino e maravilhoso. É o cinema desconhecido, o cinema de Glauber Rocha..." (aqui, o volume do som vai diminuindo até que a voz de Glauber desapareça, cedendo de novo seu lugar ao comentário over feminino). Assim que Glauber indica pela primeira vez "pra aqui, é o cinema do terceiro mundo", apontando para sua esquerda, Isabel toma essa direção sem olhar mais para ele nem agradecê-lo nem esperar o fim do seu monólogo [Fig. 10]. Glauber fica falando sozinho em português, Isabel anda uns 5 metros nesse caminho em ligeira subida [Fig. 11], chuta uma bola alaranjada que estava por ali e então dá meia-volta [Fig. 12] e passa por trás de Glauber [Fig. 13] sem levá-lo em conta, para tomar a direção do cinema da aventura [Fig. 14], embrenhando-se no mato que o início do plano nos permitia entrever [Fig. 15] .


(Fig. 9 Fig. 10


Fig. 11 Fig. 12


Fig. 13 Fig. 14


Fig. 15)


Em consonância com as imagens deste movimento de Isabel, que a câmera reenquadra em duas panorâmicas laterais, o comentário over feminino intervém duas vezes em francês, alternando-se ou coexistindo com o monólogo de Glauber. Primeiro, no breve instante em que Isabel ensaia tomar o caminho do cinema do terceiro mundo e Glauber o qualifica também de "cinema desconhecido", a voz over feminina se superpõe à dele e retoma sua interpelação a Godard: "e então, você sentiu a complexidade das lutas, você sentiu que te faltavam os meios de analisá-las". Silêncio dela enquanto Glauber precisa as tarefas do cinema do terceiro mundo na construção de uma indústria. Pouco depois, quando a imagem mostra claramente a renúncia de Isabel ao cinema do terceiro mundo (cujo caminho ela abandona) e seu reencaminhamento rumo ao cinema da aventura, a voz over feminina reaparece dirigindo-se a Godard: "você voltou [então] à sua situação concreta. Na Itália, na França, na Alemanha, em Varsóvia, em Praga, você viu que o cinema materialista só nascerá quando enfrentar em termos da luta de classes o conceito burguês de representação". O estreito paralelismo entre estes dois comentários over sobre a redefinição da posição de Godard (constatação dos limites de sua análise do cinema do terceiro mundo e retorno à sua situação concreta) e as ações corporais de Isabel que parecem ecoá-la e traduzi-la visualmente (breve encaminhamento ao terceiro mundo, meia volta e reencaminhamento rumo à aventura) selam a identificação de Isabel a Godard, já sugerida anteriormente. Definida sua escolha, completado seu trajeto e interrompida pela mixagem a fala de Glauber, a tela fica preta e a voz over feminina conclui a cena: "Lutar contra o conceito burguês de representação, [...] para arrancar do imperialismo os instrumentos da produção, para arrancá-los da ideologia dominante"

O arranjo geral dos elementos da cena, notadamente a identificação inicial de Glauber ao "cinema do terceiro mundo" que Godard teria ido interrogar, e a decisão final deste último de voltar à sua situação concreta17 (comentada em over pela voz feminina e ecoada na imagem pelo gesto do seu alter-ego Isabel de seguir o caminho do cinema da aventura), autorizaram alguns intérpretes a superpor sem mais as dualidades Godard / Glauber, cineclastia / terceiro-mundismo e cinema da aventura / cinema do terceiro mundo, como se elas se recobrissem inteiramente e a terceira correspondesse exatamente aos projetos estéticos de Godard e Glauber entendidos como uma exclusão recíproca. Na verdade, uma análise mais atenta desta cena alegórica revela um diálogo não a dois, mas a três (Gorin também participa), bem mais complexo e nuançado, desdobrando as discussões anteriores dos cineastas mas acrescentando-lhes novas clivagens. Examinemos por partes os personagens deste diálogo, seus discursos e sua interação.

A imagem de Glauber que a cena constrói traz múltiplas determinações, captando traços salientes de sua personalidade e da sua intervenção nos debates da época. O primeiro comentário over que ouvimos na cena faz dele um emblema do cinema do terceiro mundo, mas sua composição na imagem traz ressonâncias que vão além e sugerem também uma espécie de Cristo do terceiro mundo (Cristo-Corisco?)18, antecipando assim um dos temas fundamentais da teoria da cultura que ele exprimiu no fim da vida (pensemos nas quatro versões do Cristo do terceiro mundo mobilizadas na Idade da Terra), mas que já se insinuava em textos e filmes dos anos 6019. A gestualidade eloqüente deste Cristo de braços abertos, assim como a iconografia da paisagem rural parecem evocar uma certa imagerie heroicizante dos filmes sertanejos de Glauber. O hieratismo de sua figura de cabeça baixa (paralisada numa encruzilhada, a meio caminho entre a aventura e o terceiro mundo) parece porém desdramatizado e o tom geral da cena está distante dos arroubos estilísticos do cinema de Glauber. E este Cristo canta uma canção tropicalista20, urbana e pop, atenuando um pouco o pendor "ruralizante" da imagem do terceiro mundo. Notemos ainda a ausência curiosa de qualquer elemento na figura de Glauber que conote sua atividade, seu trabalho efetivo de cineasta, num momento febril de sua carreira em que, após deixar "em repouso" as imagens já filmadas do Câncer e de 1968, ele lançava o Dragão e preparava ou realizava o par Der Leone / Cabeças Cortadas. Ora, quem tem uma câmera de 16mm às costas e aparece como cineasta não é Glauber, mas Isabel Pons, a moça grávida que representa Godard. Com sua câmera, ela é a imagem mesma da disponibilidade em sua busca do cinema político que a faz atravessar o quadro e exige da câmera duas panorâmicas laterais para reenquadrá-la em movimento, enquanto Glauber não chega a romper a imobilidade da sua "crucificação". Gorin, por sua vez, aparece sob a voz da outra moça (a revolucionária), franca e veemente nas críticas aos movimentos, démarches e impasses de Godard.

Se os três cineastas aparecem alegorizados pelo Cristo e por duas moças, sua interação aparece alegorizada pela conjugação de duas conversas assimétricas e dissociadas (uma burlesca na imagem, outra mais séria, no som over): um diálogo de surdos entre o Cristo (Glauber) e Isabel (Godard), que vem interpelá-lo diante da câmera e trocar frases com ele de modo meio desconectado, e um monólogo over da moça revolucionária (Gorin) dirigido não ao Cristo (a interlocução de Gorin e Glauber não é diretamente representada), mas a Godard, cujo alter-ego Isabel não parece escutá-lo enquanto atua na cena. Voltemos brevemente ao texto destas conversas.

Na primeira, Isabel começa por reconhecer a atividade política de Glauber em termos marxistas ("desculpe interromper sua luta de classes", diz ela a um Cristo-Glauber que nada fazia senão cantar...), antes de lhe perguntar a direção do cinema político, supondo que ele conhecia o(s) caminho(s). Tendendo a um monólogo geopolítico (Sermão da encruzilhada?) e antecipando assim uma série de outros proferidos por ele em Cabeças Cortadas, Câncer (montado em 1972), Claro, Di e A Idade da Terra, a resposta de Glauber distingue e nomeia o caminho de dois cinemas diferentes, o da aventura de um lado, o do terceiro mundo de outro. Ambos soam como alternativas políticas aos três modelos (Hollywood/Mosfilm/Underground) já rejeitados por Godard na seqüência anterior e já deixados para trás portanto no caminho percorrido por Isabel. Destes dois caminhos alternativos, surgidos na nova bifurcação em que Glauber aparece, ele não chega a dizer qual é o bom. O do terceiro mundo é o único dos dois que seu monólogo caracteriza com mais vagar, e alguns elementos da cena tendem a alinhá-lo a esta via, mas a rigor ele não diz em nenhum momento deste plano que ela é a melhor, ou que devemos preferi-là à via do cinema da aventura. Na verdade, a postura e o discurso de Glauber na cena parecem admitir a validade dos dois caminhos, ao invés de restringi-la a um só dentre eles. Seu personagem parece assim traduzir uma prática e uma postura abertas que o cineasta exprimiu numa entrevista de abril de 1969, na qual diz ter feito o Câncer antes do Dragão "também para demonstrar que em cinema não há um só caminho. [...] Naquela época alguns diziam: 'o caminho do cinema é o filme a cor, de grande espetáculo', e outros: 'o caminho do cinema é o filme de 16mm, underground'. O caminho do cinema são todos os caminhos" (RCN, p.180). Esta abertura de Glauber coexistiu com sua teimosa intolerância face ao chamado "cinema marginal" que despontava no Brasil, e deu lugar, numa entrevista de 1974, a uma defesa mais taxativa de uma via preferencial para o cinema político, uma terceira via entre a "peste reformista" e a "cólera do esquerdismo utopista" exemplificado pelo autodestrutivismo de Godard. (cf. RCN, p.271-2).

Em nossa cena, Isabel não responderá mais verbalmente ao monólogo de Glauber, do qual só parece reter a indicação da direção do cinema do terceiro mundo, ignorando porém sua caracterização, proferida de resto numa língua outra que lhe era estranha. Nesta conversa, não sabemos exatamente quem formulou a dicotomia entre o cinema da aventura e o cinema do terceiro mundo presente na fala de Glauber : Godard, Glauber ou Gorin? Embora Gorin tenha declarado ser o responsável pela idéia da cena e Glauber tenha contado que Godard lhe "soprou" o seu texto, tudo indica que ele improvisou bastante ao dizê-lo, introduzindo elementos (como a língua e as referências ao contexto brasileiro) que obviamente escapavam a Godard e Gorin, só podendo vir dele mesmo.

Na outra conversa, cujo espaço não nos é dado a ver e cujo texto deve ser de Gorin, a moça revolucionária cuja voz over o representa se dirige a Godard para comentar como uma mudança de método (atalho? desvio?) sua consulta ao cinema do terceiro mundo sobre o caminho do cinema político, sua constatação de que o que informava a resposta de Glauber ia além dos seus instrumentos de análise, e sua decisão de voltar então à sua situação concreta na busca de um cinema materialista (= da aventura?) capaz de enfrentar o conceito burguês de representação. Nesta segunda conversa, Godard só escuta (no espaço off) e não fala, mas é ele quem, junto com Gorin, concebe o agenciamento dos materiais e a estrutura da cena, cuja montagem, creditada aos dois nas fichas do filme que circulam, parece ter ficado mais a cargo de Gorin21.

Mais do que apurar no detalhe o que vem de cada um nesta construção a três, importa ver como ela redefine, ao encená-las, as discussões de Glauber e Godard em 1967-69. A bifurcação indicada por Glauber entre os cinema da aventura e do terceiro mundo não recobre a oposição entre a cineclastia godardiana e o seu pragmatismo terceiro-mundista, a qual teria marcado, segundo ele, suas discussões com Godard. Glauber não chega a caracterizar o cinema da aventura (cujo nome evoca um filme de Antonioni, não de Godard...), mas nada na cena associa tal cinema a alguma postura cineclasta, que parece desaparecer. Talvez a alternativa entre dois caminhos igualmente possíveis e a decisão de Isabel de trilhá-los e de escolher o da aventura já acusem uma inflexão de Godard trocando a idéia de destruir o cinema tout court por uma luta mais precisa contra o conceito burguês de representação. Mas a alternativa enunciada por Glauber tampouco recobre o que poderia ser visto como uma oposição entre seu programa e o de Godard, como se sua prática de cineasta se restringisse ao caminho do terceiro mundo e a de Godard ao da aventura. Em primeiro lugar, porque na própria formulação de Glauber, a oposição entre os dois pólos não é excludente, e tanto o cinema da aventura quanto o do terceiro mundo são qualificados de "desconhecido" - adjetivo que ele empregará aliás, em 1971, para definir sua própria ideologia22. E por que supor que a aventura está vedada ao cinema do terceiro mundo, como se ela fosse um apanágio ou um luxo das cinematografias dos países ricos? De resto, se descartamos as nuances e absolutizamos a oposição dos dois cinemas, de que lado devemos situar Glauber e Godard? Se por cinema do terceiro mundo entendermos um cinema de comunicação mais imediata com o público, engajado na "alfabetização das massas" como diz Glauber no fim do seu monólogo da encruzilhada, e desvinculado da aventura estética, então deveremos situar a maioria dos filmes de Glauber no pólo da aventura, ou pelo menos na vertente mais radicalmente “aventurosa” do cinema do terceiro mundo. Quanto a Godard, que nos parece claramente um cineasta da aventura, vale lembrar a provocação de Glauber exortando-o, na entrevista de 1969 aos Cahiers du Cinéma (n.214, juillet / août, p.40), a superar a culpa por "sua condição perigosa, divina e maravilhosa" (adjetivos que seu monólogo associara ao cinema do terceiro mundo...).

Se a clivagem formulada na cena não recobre exatamente as posições anteriores de Godard e Glauber nem seu projeto estético, a cena instaura outras, introduzindo Gorin como um terceiro interlocutor que observa e comenta o diálogo dos dois colegas, e estabelecendo uma partilha das funções entre os 3 personagens, que reserva a Glauber o papel de enunciar a alternativa do cinema político (aventura ou terceiro mundo), mas não o de considerar ou eventualmente criticar a posição de Godard, o que segue sendo uma prerrogativa do comentário over feminino (Gorin). Quanto a Godard, através de um gesto corporal de Isabel, ele acaba se reservando o direito de sugerir senão uma crítica teórica ou abstrata, ao menos uma recusa prática, concreta, da via descrita por Glauber como a do cinema do terceiro mundo. Isabel começa a segui-la, mas desiste no meio, retorna e segue a direção do cinema que Glauber define como o da aventura.

IV. O contracampo evitado e a auto-crítica como blindagem

Apesar de breve, sóbria e circunscrita na estrutura do Vent d'Est, a cena da encruzilhada representa um encontro excepcional na obra de Godard e de Glauber, um ponto de fuga para o qual ambas pareciam convergir. Os dois cineastas sempre buscaram em sua intervenção cultural e em seu projeto de cinema a interlocução com outros criadores. E tenderam desde cedo a encenar encontros. Em sua atividade crítica, ao lado de entrevistas reais, Godard publicou outras fictícias, forjando encontros, por exemplo, com Rossellini e Renoir em 1959 (cf. J.-L. Godard par J.-L. Godard, 1985, p.187-93). Ao longo dos anos 60, ele não cessou de encená-los em seus filmes, para os quais convidou intelectuais como Brice Parain, Roger Leenhardt e Francis Jeanson, ou artistas como Fritz Lang e Samuel Fuller, todos interpretando seus próprios papéis, falando em seu próprio nome e contracenando com atores. Isto continuará a acontecer depois, e a lista de interlocutores com os quais ele de algum modo encena encontros inclui ainda escritores como Marguerite Duras e Mahmoud Darwich, cineastas como Vera Chytilova e Woody Allen, cientistas como René Thom, músicos como os Rolling Stones e os Rita Mitsouko, líderes políticos como Tom Hayden, Eldridge Cleaver. No trabalho crítico de Glauber e na construção de sua imagem pública, a representação de encontros também cumpre papel importante, como atestam seus três livros de crítica (Revisão, Revolução e O Século), que estão cheio deles. Não seria exagero portanto ver no trabalho dos dois criadores uma tática e uma poética do encontro.

O encontro representado em Vent d'est é entre um cineasta exponencial do mundo desenvolvido e outro do terceiro mundo. O trajeto dos dois no fim dos anos 60 os encaminhava para isso. Um tal encontro, que já entrara há mais tempo no programa de cineastas como Rouch e Pasolini, começa a entrar no de Godard a partir de sua proposta ao governo do Vietnã do Norte em 1965-6 (recusada) de fazer um filme lá sobre a agressão americana, do seu manifesto de 1967 por "dois ou três Vietnãs" no cinema e das cenas filmadas com militantes negros americanos em One plus One e One American Movie. As filmagens de Jusqu'à la victoire junto aos militantes palestinos levarão mais longe este encontro, e Letter to Jane (1972) fornecerá a análise mais lúcida (e mais violenta ao mesmo tempo) da sua representação pela mídia ocidental. No programa de Glauber, informado pelos movimentos anticoloniais e pela experiência da revolução cubana, o confronto entre o colonizado e o colonizador fornecia um esquema geopolítico de base, operante em seus textos (como "Estética da fome" de 1965 e "Tricontinental" de 1967) e em seus filmes (de Terra em Transe a Idade da Terra).

Se somarmos a estes trajetos convergentes a admiração e o interesse que o trabalho de cada cineasta suscitou no outro em fins dos anos 60, podemos então dimensionar o valor de emblema que aquela cena poderia ter ganho no trabalho de ambos. Mas como ela representa o encontro para o qual tudo convergia? Com um olhar disfórico: respeitoso, cauteloso mas também reservado. Na verdade, o que ela mostra se aparenta mais a um desencontro ou, no dizer de Gorin, a uma "impossibilidade de encontro entre os tropicalistas do Terceiro Mundo e os conceitualistas do primeiro em busca de uma revolução no meio"23. O objeto da sua alegoria é antes a ruína de uma esperança, pressentimento talvez do fim da miragem de uma frente única contra o cinema imperialista. O que a seqüência da encruzilhada encena é o fracasso de Godard em ir buscar no cinema do terceiro mundo uma fonte de inspiração e um método válido para um cinema político cujos caminhos Vent d'est tateava e cujos adversários atacava com vigor. Nas imagens e nas falas in, a cena nos oferece uma alegoria em chave burlesca deste fracasso. Nos comentários over, ela descreve as suas etapas: dúvida sobre o bom caminho / consulta ao terceiro mundo / escolha do caminho da própria aventura européia.

Enquanto representação do encontro com Glauber, a cena é honesta ao mostrar seus limites. Isabel e Glauber não chegam a se olhar nos olhos, não chegam a trocar olhares nem a estabelecer um verdadeiro diálogo. O deles é um diálogo de surdos, cada um falando sua língua (ela o francês, ele o português) e tendendo a ignorar o outro. Isabel só retém da fala de Glauber a indicação dos dois caminhos, mas não se interessa pela sua visão geopolítica, pelo que ele diz acerca do cinema do terceiro mundo. E Glauber praticamente a ignora, não se dispõe a acompanhá-la em nenhum dos dois caminhos, e nem sequer em parte deles. Desencontro dos olhares e das falas, desatenção recíproca.

Mas além de representar o encontro dos cineastas, o filme lhe acrescenta também uma nova peça, uma nova parte integrante. E enquanto tal, poderia ter desenvolvido aquele diálogo na sua própria fatura, explicitando as divergências, formulando as críticas de Godard (e Gorin) à posição de Glauber e integrando as de Glauber à posição de Godard (e Gorin)24. Seus autores preferem não fazê-lo, optando por uma encenação low profile. A cena reserva a Glauber um tratamento mais respeitoso e menos leviano do que o recebido, neste e noutros filmes, por outros interlocutores de Godard, como Vera Chytilova e Chris Marker (em Pravda), Jane Fonda (em Letter to Jane), Woody Allen (em Meetin’ WA) e Michel Piccoli (em Deux fois cinquante ans de cinéma français). Em compensação, ela evita, por assim dizer, o contracampo (este teria aparecido se Glauber tivesse aceito o convite para filmar um plano seu?), e reserva a Gorin a prerrogativa da crítica. Noutras palavras, o filme privilegia claramente uma auto-crítica do grupo Dziga Vertov, que acaba porém por blindá-lo de uma crítica que lhe viria do exterior, de um interlocutor do terceiro mundo como Glauber. Em função talvez das discussões com Glauber que precederam o filme, a cena parece suspender seu juízo sobre o cinema do terceiro mundo (cuja recusa por Isabel é puramente prática), mas em compensação não chega a reconhecer objeções às posições de Godard e Gorin que ele tenha levantado. Em suma, a representação alegórica do encontro permanece prudente e equilibrada, mas não faz avançar muito o diálogo entre eles, que de resto permanecerá truncado depois deste episódio, Glauber adotando nos anos 70 uma postura ambivalente em relação a Godard25, e Godard observando o silêncio em relação a Glauber, que ele só quebrará muitos anos mais tarde, ao mencioná-lo pontualmente como um companheiro mais jovem numa ou noutra entrevista, e sobretudo ao lhe dedicar (assim como a John Cassavetes) o episódio 1-B das Histoire(s) du Cinéma.

Curiosamente, porém, ao dedicar a Glauber o episódio 1-B das Histoire(s) du Cinéma, Godard decidiu usar, além de um letreiro aos 28’ [Fig. 17] mencionando Antonio das Mortes (título francês de O Dragão da maldade, que precedeu Vent d’Est), um fotograma aos 2’13” não de algum filme posterior de Glauber, mas da cena da encruzilhada no Vent d'Est [Fig. 16].


(Fig. 16: Dedicatória a Glauber das Hisoire(s), 1-B Fig. 17: Outra homenagem a Glauber nas Histoire(s), 1-B )

Não sabemos se tal cena representou o termo final de seu contato com o cinema de Glauber ou se simplesmente ela era a imagem mais acessível e à mão para Godard no momento da produção da série. Na versão livro das Histoire(s) du cinéma, publicada em 1988 pela ed. Gallimard em 4 volumes, a imagem com a dedicatória "pour Glauber Rocha" [Fig. 18] aparece numa forma variante (Vol. 1, p.155), inscrita em vermelho sobre um fotograma de Moonfleet (Fritz Lang, 1955), uma página depois de uma versão mais pictórica do fotograma de Glauber no Vent d’Est (p.154), com uma íris e sem letreiro algum [Fig. 19].


(Fig. 18: Dedicatória de 1-B no livro das Histoire(s) Fig. 19: Cena de Vent d’Est no livro das Histoire(s) )

Embora tocante, esta dupla homenagem tardia, nas Histoire(s) e na sua versão impressa, deixa a impressão de que Godard não explorou a fundo as virtualidades que este encontro com Glauber comportava (o primeiro talvez que ele travou com um artista de grande envergadura vindo do terceiro mundo), nem deu continuidade a um diálogo que deveria ter prosseguido. Neste diálogo, o gesto seguinte de Glauber foi a realização de Der Leone (filmado no Congo Brazzaville em setembro-outubro e montado em Roma em novembro–dezembro de 1969), que traz uma influência confessa de Godard, mas que podemos ver também, entre outras coisas, como uma resposta aos seus filmes políticos, sobretudo a Vent d'est26. Ora, Godard parece ter ignorado esta continuação do diálogo, e nunca reagiu publicamente a este nem aos filmes seguintes de Glauber.

Em todo caso, se é verdade, como sugere Glauber, que o encontro com o Cinema Novo brasileiro contribuiu para a politização do cinema de Godard27, é bem verdade também que o contato com o cinema de Godard e este episódio de diálogo mais próximo terão contribuído para a radicalização estética do cinema de Glauber. Sua interpretação de si mesmo de braços abertos, seu canto e seu monólogo da encruzilhada em Vent d'Est antecipam e inauguram a fase desconstrutiva de seu cinema, em que ele se põe em cena de modo mais ostensivo (em seus filmes28 como nos dos outros), "invade" com a voz e o corpo as ficções que cria, adota estruturas narrativas mais abertas, inventa uma versão original do filme-ensaio, exaltada e calorosa (bastante diferente das versões mais "frias" e racionalistas de Marker, Kluge, Farocki ou mesmo Godard).

Assim, embora encene um diálogo que ficou truncado, literalmente a meio caminho, a seqüência da encruzilhada no Vento do Leste deixa-nos também um traço, um vestígio de uma verdadeira fecundação mútua entre os cineastas29.



Produção

Apoio

Correalização

Copatrocínio

Realização


Sugestão de Hotel em São Paulo, VEJA AQUI. Agradecimentos ao Ibis Hotels.


É expressamente proibida a utilização comercial ou não das imagens aqui disponibilizadas sem a autorização dos detentores de direito de imagem, sob as penalidades da lei. Essas imagens são provenientes do livro-catálogo "Godard inteiro ou o mundo em pedaços" e tem como detentoras s seguintes produtoras/ distribuidoras/ instituições: La Cinémathèque Francaise, Films de la Pléiade, Gaumont, Imovision, Latinstock, Marithé + Francois Girbaud, Magnum, Peripheria, Scala e Tamasa. A organização da mostra lamenta profundamente se, apesar de nossos esforços, porventura houver omissões à listagem anterior.
Comprometemo-nos a repara tais incidentes.

© 2015 HECO PRODUÇÕES
Todos os direitos reservados.

pratza