Apresentação

 

Durante a pesquisa para a Mostra Cinema Marginal, entre os diretores que conheci, Ozualdo Candeias chamou especialmente minha atenção.

Em nosso primeiro encontro (no relançamento do livro de Jairo Ferreira), eu portava uma câmera de vídeo e, mesmo sabendo que Candeias não gostava de ser gravado, fui conversar com ele. De início ele se incomodou, mas acabou dando uma longa entrevista. Lembro-me que fiquei espantado com o quanto Candeias, ríspido o tempo inteiro, se mostrou ao mesmo tempo uma pessoa sensível e com uma visão de mundo diferenciada.

Tempos depois, pouco antes da estréia da Mostra Cinema Marginal, tivemos outro encontro num bar na Boca do Lixo. Eu pretendia gravar um depoimento, mas quando ele viu a câmera ameaçou ir embora. Acabei não gravando. Foi uma conversa muito difícil, desanimadora: ele disse que a mostra estava fadada ao insucesso, que de marginal mesmo havia “no máximo uns três ou quatro filmes”, e também que “ninguém queria saber desta história”. Com a abertura da mostra, tive a oportunidade de assistir a alguns filmes de Candeias que ainda não conhecia e que me causaram certo estranhamento, dada a visceralidade com que os temas eram tratados. A partir daí, não tive mais dúvidas. Quando o encontrei novamente, disse: “A próxima mostra que eu vou fazer vai ser a sua”, e ele riu com desdém. A mostra transcorreu com absoluto sucesso e o livro Cinema marginal brasileiro veio a se tornar obra de referência.

Candeias, nessa época, havia terminado Uma rua chamada Triumpho. Convideio-o para fazer o lançamento do livro na mostra, mas ele não quis, então comprei quarenta exemplares para disponibilizar ao público. Ao preencher o recibo, ele não lembrava o número de seu RG e me passou o documento de identidade, foi então que descobri que ele completaria oitenta anos em 2002.

Passado algum tempo, após inúmeros encontros – em alguns períodos quase diários – fui percebendo cada vez mais sua natureza sensível, suas principais referências, sua visão de mundo e como ele a transpunha para os filmes. Num desses encontros, Candeias mostrou a foto de alguns mendigos dormindo na porta de uma empresa e disse que queria publicá-la com o texto: “Pelo menos em algum momento a firma faz algo de útil para a sociedade”. Mas, com receio, desistiu: “Depois os caras vão ver a foto e proibir os mendigos de dormir lá, e eu não quero ferrar com os mendigos, né?”.

Nos encontrávamos com bastante freqüência e ele, cada vez mais intensamente, acompanhava e participava da criação do projeto. Vinha sempre a pé, de sua casa na avenida Rio Branco, até a praça da República, trazendo uma sacolinha ou um envelope com fotos. Certa vez, ficamos quase doze horas assistindo a diversos filmes dele, muitos inéditos, e ele comentava um a um. Um encontro memorável, que nos aproximou muito do autor e de sua obra. Entre outros comentários, ouvi do próprio Candeias que poucas pessoas entendiam seus filmes: “Zézero é uma crítica direta ao governo e nunca ninguém disse isso”.

Não havia nenhum livro sobre ele. Ouvia-se falar de Candeias como um ex-caminhoneiro e ao mesmo tempo um gênio, mas sua verdadeira origem permanecia obscura. Informações dispersas e comentários valiosos sobre Candeias foram se acumulando e me colocaram diante de bons motivos para montar sua história. Mas, tinha pela frente a árdua missão de convencê-lo a dar algumas entrevistas com o objetivo de reunir subsídios para a elaboração de sua biografia. A gravação resultou em 25 horas de material.

Além das imagens de que precisávamos para o livro, tínhamos a responsabilidade de catalogar toda a obra de Candeias, incluindo curtas-metragens, vídeos e documentários, ainda que não concluídos – parte expressiva de sua filmografia e que tradicionalmente são desconsiderados em publicações desta natureza.

O acesso ao arquivo pessoal de Candeias foi essencial. A cada momento, nos surpreendíamos com as fotos que víamos e ele com o material que íamos encontrando. Percebemos que, mesmo dentro de certa desorganização, ele teve o cuidado de preservar sua obra, depositando sistematicamente negativos, cópias, material iconográfico e documentos na Cinemateca Brasileira. Dessa maneira, pudemos viabilizar um contratipo do filme Tambaú, cidade dos milagres, primeiro trabalho autoral de Candeias; uma cópia integral de A visita do velho senhor; e uma cópia nova do clássico A herança.

Assim, a idéia de realizar a primeira retrospectiva completa do grande autor Ozualdo Ribeiro Candeias se concretizou, com a colaboração de Arthur Autran, Jean-Claude Bernardet, Ruy Gardnier, Hernani Heffner, Carlos Roberto de Souza e muitos outros, que se dedicam a pesquisar e divulgar os mais variados aspectos do cinema brasileiro.

Eugênio Puppo
Curador