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Candeias, fotógrafo

Ricardo Mendes

 

 
 
Bárbara Fazio em A herança
 
Manelão, o caçador de orelhas

A trajetória de Candeias na fotografia surge à margem de sua produção para o cinema. Na verdade, muito tempo depois. Ozualdo começa a fotografar após finalizar, em 1967, na Boca do Lixo, seu primeiro longa A margem, uma espécie de Noite vazia filmada na outra margem do Tietê.

Compra então uma câmera Exakta, por recomendação de Ody Fraga. Além das dicas de Jaques Dehenzelein, com quem trabalhara, nesse primeiro momento na fotografia tirava vantagem do aprendizado autodidata em cinema, através de livros básicos, além de um processo de experimentação intenso. Tudo isso, à margem do circuito fotográfico, dos fotoclubes, das exposições.

Nos anos 70, viajaria pelo Brasil fazendo fotos para uma empresa de audiovisual. Num período que ele mesmo aponta como de agonia, do último suspiro do audiovisual, engolido pelo vídeo. Fotografia era então uma etapa de investigação para a produção de seus filmes, mero veículo à serviço de outro, o que revela uma relação muito objetiva, direta, com a técnica. Ela está a serviço de uma idéia. Não muito diferente da relação com a informática, já que Candeias começa a escrever seus roteiros nos primeiros modelos de microcomputador da década de 80, usando como segundo computador um Prológica – “uma beleza”.

O cineasta passa a fotografar intensamente. Fotos para still de seus filmes e de outros diretores, mas também – o que interessa aqui – o dia-a-dia na Boca do Lixo. “Quando dava na cabeça, eu fotografava. Eu fotografei à toa, eu não estava preocupado com nada.”

Nesse processo, talvez tenha sido fundamental o estímulo de José Maria do Prado, que motivou a primeira exposição em 1984: “A Boca”, na Imprensa Oficial. “O Zé Maria gostou das fotos e fez a mostra. Eu não ganhei nada com isso. Todo mundo foi comer. Para mim, era importante esta divulgação desse pessoal, que acho que tem um mérito: perseguiu o cinema. Então isto é uma meiahomenagem a esses caras. Mas não fique pensando que eu vivia falando com eles, não, mas esta importância eles tinham.”

José Maria do Prado, entusiasta, resumia então, com clareza, o resultado atingido com aquela primeira configuração. “Nada se parece com o mundo glamorizado que a palavra cinema evoca: as pessoas estão longe de ditar elegância, os prédios pouco se preocupam em disfarçar a decadência, os bares não aspiram a ser botecos e os hotéis modestamente dissimulam (ou se anunciam) através da abreviatura H.O. [...] Candeias vive a Boca e a fotografou de dentro, tal como um marinheiro faz o seu diário. Por isso, em muitas dessas fotos [...] a ironia disfarça um lirismo por aquelas pessoas que amam fazer cinema e são jogadas num mundo bem diferente daquele que pen-samos ser o mundo do cinema.”

Surgem aqui dois pontos relevantes. Um, ligado à inflexão dessa produção fotográfica livre, sem propósito aparente, pura ponte para outras idéias; outro, à relação de amor e ódio com a Boca do Lixo, por um lado reconhecendo a importância desse segmento, mas evitando uma adesão pura e simples. A fotografia de Candeias então passa a cristalizar-se ao redor da idéia de documentar a Boca. Alguns anos depois da primeira mostra, ele realiza no MIS outro evento, “Uma rua chamada Triumpho”, marcando assim seus vintes anos de fotografia. O projeto de idealizar uma publicação ganha forma, por caminhos diversos, numa longa gestação. “Eu faço coisas porque elas precisam ser feitas. Esse livro deveria ser feito. É um cinema que deu certo e porque ele deu certo, está aí dentro.”

Não havia na praça projetos de livros similares, enfocando em especial os diretores de cinema “como os americanos fazem”. Os livros produzidos por Anselmo Duarte ou Sarraceni não motivaram Candeias: eram caminhos diversos. Na tentativa de fazer seu livro, ocorreram vários desencontros, desde a primeira mostra na Imprensa Oficial. “Não deu nada certo, eu joguei para o lado. Depois, o que eu queria fazer? Eu cheguei à conclusão que eu não sabia o que queria.”

As palavras de Candeias em depoimento recente mascaram um pouco a objetividade de sua ação, expressa por ele mesmo no livro, finalmente publicado em 2001: “Os presentes retratos devem ser mirados somente como documentais e fazê-los como foram feitos foi melhor do que não fazê-los, penso... A idéia era fazer um livro fotográfico dos diretores de cinema de ‘ontem e de hoje’ do nosso cinema mas... não deu e deu no que deu”. O propósito documental, a consciência da necessidade de realizar esse livro fotográfico, a tentativa de exaustão caçando imagens em viagens pelo interior do estado, tudo isso, associado ao envolvimento direto com a cena fotografada, fazem qualquer ensaio de aproximação e análise ser uma atividade difícil e perigosa.

O grande risco

O que há de motivador, enfim, em Uma rua chamada Triumpho? Antes de tudo, o resultado visual de um ensaio social, projeto de longo fôlego. No panorama editorial da fotografia brasileira da década de 90, plenamente dominado por projetos de grande envergadura e investimento financeiro, essa produção de baixo custo, tirando proveito da editoração eletrônica barata e da cópia xerox, parece quixotesca.

No entanto, a intimidade com o tema, a gestação turbulenta, tudo parece contribuir para fazer dela uma referência para projetos documentais. Não pelas imagens isoladas, cuja grande qualidade está nos retratos com quem partilha intimidade, driblando as poses, criticando as personas, que tentam se estabelecer a todo custo; mas pela edição visual, a serviço de um propósito claro.

A edição de imagens é instigante na sua simplicidade e descompromisso, aspecto que me interessava desde as exposições realizadas com o material, embora seja para Candeias apenas “composição”. Ele mal se recorda das montagens fotográficas expostas então e, aqui, tudo não passa de uma solução gráfica. “Nunca me passou pela cabeça. Eu tinha que botar, mas não amontoar.”

Radical na seleção de material, só participa do livro o “pessoal da boca”, em fotos de rua, nada de estúdio. Se uma personalidade, como Paulo Emílio ou Almeida Salles, aparece, o fato merece uma justificativa de inserção imediata. Em resumo, o livro concilia o lado experimental de Candeias (não na estrutura visual das fotos, mas na edição engajada e sem compromisso com padrões) e o desejo documental. Palavras suas no próprio livro. “Ficou denso, ficou útil. Cinemabocadelixo e fim de conversa.”

É possível ir além na análise da produção de Candeias, o fotógrafo? A aproximação ao autor é difícil. “Eu faço as fotos e pouco importa para o que é que é!” Olho o livro sobre a mesa e acho a resposta mero rodeio. Como continuar?

Das imagens não restaram nem mesmo os negativos, apenas o material escaneado. Aqui e ali surgem algumas cópias dadas aos amigos. De resto, seu “arquivo pessoal” reúne hoje pilhas de imagens, em desordem, a exigir um esforço de articulação.

O impasse atual é descobrir se a fotografia em Candeias, apesar do longo intervalo de produção, corresponde a um momento (de grande envergadura), ou se incorpora outras produções. O esforço em realizar o projeto documental pode, porém, ter superado outros caminhos.

Embora no contexto local seja possível detectar certo preconceito, não há nada de desmerecedor em Candeias ser fotógrafo de um tema recorrente: a Boca. Claro, pode-se detectar, entre outros projetos, ensaios inconclusos sobre a infância desamparada e drogada da região central, tentativas comerciais.

A trajetória de Candeias na fotografia surge à margem de sua produção para o cinema. Nem por isso deixa em seu trajeto peculiar de representar uma conribuição única. Fim de conversa.