Portal Brasileiro de Cinema  Um Rei Lear na Boca

Um Rei Lear na Boca

João Silvério Trevisan

 

No final dos anos 60, havia na Boca do Lixo de São Paulo um pequeno grupo de jovens da classe média que procurava fazer cinema, ansiando por derrubar o governo sufocante dos militares à direita e querendo matar o pai cinema-novo que os sufocava à esquerda. Eu fazia parte dessa pequena horda, que sonhava com a utopia da revolução num ambiente totalmente avesso a ela, onde as pessoas em geral lutavam para sobreviver produzindo filmes cujo único compromisso era com o sucesso a qualquer custo. Ali, não havia meio termo: o êxito comercial era a utopia máxima. E nós, pretensos revolucionários, engolimos a seco e nos instalamos na Boca, por não haver outra alternativa: aquele era o cinema possível. Entre esses dois extremos, uma pessoa nos parecia acima do bem e do mal: Ozualdo Candeias. Sempre me lembro dele como um senhor de cabelos brancos, pois era bem mais velho do que nós. Candeias convivia muito bem no ambiente da Boca, ele era oriundo dali, não um produto implantado, como nós. Era amigo de todos. Ria, contava piadas, tirava fotos, repartia as mesmas lingüiças fritas e a mesma caninha, na porta do bar Soberano, onde todo mundo se encontrava para narrar projetos novos ou lamentar sonhos fracassados. Conversava conosco com evidente prazer, sem que o jeito simples atrapalhasse em nada a comunicação. Não sabia falar de Marx, nem de Lukács, Mao ou Che Guevara, ídolos políticos de minha geração. Ainda assim, nossa relação com Candeias ultrapassava a mera admiração, para chegar ao carinho. Acho que, em nosso populismo esquerdizante, o invejávamos, pois víamos nele a legitimidade que nos faltava. Era um “homem do povo”, que não negava suas origens ao fazer um cinema ao mesmo tempo de extração popular e com altas intenções poéticas. Além disso, Candeias compartilhava a linguagem da Boca. Era sobrevivente daquele cinema brasileiro heróico e tosco. Não por acaso, um dos filmes que mais me apaixonou, naquele período, foi Meu nome é Tonho. Tinha um amor quase fetichista por cada plano do filme. Nele, me atraía a busca da rara expressão caipira brasileira, que resultou muito verdadeira, mesmo que mitificada por certa nostalgia rural. Seu grande mergulho poético repousava, a meu ver, na melancólica reflexão sobre a condição humana. Mais do que A margem, seu filme-fetiche das esquerdas da época, Meu nome é Tonho me encantava quase até as lágrimas. Em Orgia ou o homem que deu cria, fiz algumas citações a Candeias. A mais óbvia delas era uma menina meio louca (lembrando o personagem andrógino de Jean Garret no filme de Candeias), acocorada numa árvore, gritando ao léu: “Meu nome é Tonha, meu nome é Tonha”. Era uma homenagem, mas também uma molecagem oswaldiana (de Andrade), bem ao estilo do próprio Candeias.

Além disso, convidei-o para fazer um pequeno papel em meu filme. Candeias interpretou o pai assassinado pelo personagem principal. Digamos que, no caso, tratava-se de um pai metafórico mesmo, pois em seu lugar deveria estar Glauber Rocha, se eu fosse levar a ficção até o limite da realidade. Não por acaso, inicialmente esse filme chamava-se Foi assim que matei meu pai. O título foi mudado por insistência do co-produtor da Boca, que ficou escandalizado, fazendo eco ao conceito que se tinha por ali a meu respeito: um louco. Glauber era nosso pai cinematográfico, um Lear despótico que nos asfixiava com talento diabólico e a maneira egóica de perseguir ideais políticos ou estéticos. Tinha que morrer para que nosso cinema florescesse. Ainda que eu não tivesse premeditado isso, é claro que havia um sentido em colocar Candeias no lugar de Glauber. Ele correspondia, certamente, à fantasia de pai que eu tinha em mente. Bom, talentoso, simples e amigo – o contrário do Glauber explosivo, belicoso e competitivo. Então por que matar o pai, se ele, no fundo, era tão positivo? Aí fica por conta dos meandros do mito: era necessário realizar o sacríficio, na ficção, como um ritual catártico. Candeias serviu de ator no sentido antigo, como a máscara que significa Deus, ou o Pai, no caso. E, foi, ao mesmo tempo, incorporado antropofagicamente a meu universo. Talvez por isso, a cada vez que encontro Candeias, ele me parece não ter mudado fisicamente. Suspeito que na minha fantasia ele continua ocupando o trono de um pai Lear adorável, que finalmente consegui domar, no decorrer dos anos.