Portal Brasileiro de Cinema  Processo criativo

Processo criativo

 
Guajaramirim - a taxista e parte da equipe que seguia para Santana de Jacuma - Bolívia.

Quase sempre os troços que eu invento têm um pouco disso: eu saio na rua e tropeço nas coisas. Umas eu chuto e outras não, eu levo pra casa.

Só o que sei é que eu não levo os roteiros para passear na hora de filmar. Isso tem uma razão: não é para dar uma de bom, é que no local de filmagem eu passo a ter algumas idéias. E se eu me escravizar ao roteiro... Quase todo diretor faz tudo que está no roteiro, mas eu não faço nada ou posso até fazer. Agora, os roteiros são para saber o que eu vou fazer e mostrar para quem pode participar da fita como produtor. Ator eu quero que se dane. Entrego o roteiro para ele entender, se não entendeu não importa.

Na hora de filmar é difícil ter alguma coisa parecida com o roteiro, eu nunca procurei saber se tem ou não. É um tipo de facilidade que eu tenho, tem gente que fica admirado com isso, eu trabalho assim, tem outro que trabalha de outro jeito. Entre o roteiro e o filme, sempre fica diferente, sempre é parecido. No Bellas não sei, mas devia ter uns vinte, trinta por cento do roteiro no filme. Por exemplo, O vigilante foi uma barbaridade, cada coisa que eu via era muito melhor do que eu tinha escrito. Aopção não tinha nem o que escrever, mas estava meio escrito, né? Eu saía com uma máquina nas costas aí pela a estrada.

Todos os roteiros que eu escrevo são para convencer produtor. Por exemplo, tem uns três ou quatro que eu tinha que convencer a Embrafilme, uns dois eu tinha que convencer o Governo do Estado de São Paulo, como A herança, e quando eu fiz Meu nome é Tonho nem conhecia o cara que acabou sendo produtor. Só A margem que tive que convencer a mim mesmo. O vigilante eu tive que convencer a Embra, tinha o Governo do Estado e um monte de coisa. Dá pra convencer, ou melhor, tenho convencido.

A lente que eu quase sempre usei foi a 50mm, porque é a que corresponde mais com o olho humano e as características de perspectiva e não sei o que lá mais. Tudo isso eu mais ou menos aprendi quando era cinegrafista.

Quando eu fazia reportagem, não existia zoom, eu fazia zoom andando, aquelas coisas todas, eu e outros caras, como o Dib Lutfi, lá do Rio de Janeiro, que se tornou um grande cara. Aqui quando pintou a zoom foi na década de 70, zoom 250, mas ultimamente eu tenho trabalhado com a zoom 150, porque eu não tinha dinheiro para comprar outra e comprei essa mesma. Eu acho que é um negócio muito bom, é claro que às vezes os caras ou até eu mesmo posso exagerar e ficar meio chato. No Caçada sangrenta tem um começo de merda e é problema de montagem. Talvez não fizesse aquilo, mas acho que ficou bem-feita, porque entra com zoom e depois sem zoom, é montagem.

O Luiz Elias foi um cara que eu achei melhor para trabalhar e também devo ter aprendido com ele, mas na época eu já sabia um pouco. A primeira coisa que eu montei com ele foi o Meu nome é Tonho. Ele montava meio o que eu queria mas, por exemplo, tinha aquelas cenas de tiroteio, então eu passava para ele os negócios muitos chatos de fazer. Eu dava as indicações, ele montava sozinho mesmo e ficou tudo muito bom. Em A herança, a aparição do fantasma ele montou sozinho também. Era um perigo danado dar para ele montar, porque ele era montador de comercial. Uma fita que tinha que ficar em uma hora e vinte minutos se bobeasse ficava em trinta minutos. O filme esta aí, ainda tem um pouco disso. Eu ficava meio de olho.

Zézero é uma experiência sonora, é uma experiência de aplicação do som. A herança está cheio de aplicação de som que nunca ninguém pôs: quando o cara abre a boca para falar, o passarinho canta. Essas experiências com som começaram em A herança e no Zézero e até hoje eu faço isso. Por exemplo, em Zézero aquela hora que o cara não tem dinheiro para pagar a mulher e quer trepar, e ele começa a querer agarrar ela à força, pus som de uma briga de cachorro e ficou uma beleza. O Paulo Emílio gostou disso feito o diabo, me perguntou por que eu tinha feito um negócio desse. Eu respondi que não gosto muito de som, que é um negócio que enche o saco. Ele comentou: “Imagine se gostasse...”.

Tinha um cara que fez som para mim, ele estava gravando. Um dia um galo cantou lá fora e ele gritou “corta!” e saiu correndo para pegar o galo. Quando ele voltou eu disse que não queria mais que ele fizesse o som. Perguntaram por quê. Porque quem sabe se o som vai ficar bom sou eu, não ele. O que ele tem de fazer é dar qualidade técnica nesse som. Agora, se entra máquina de escrever, o galo canta, passarinho canta, isso é o ambiente. Quando alguém está falando dentro de uma escola e tem som de criança é o ambiente. Por que o mundo tem que parar porque você tá fazendo o som? Comigo não vai parar não.

Quando comecei a dirigir ator tinha uma porção de preocupações, até com psicologia. Porque eu sabia que tinha que me relacionar com uns caras e eles tinham que achar que eu entendia de cinema. Muita gente achava que pra mim ator não tinha importância nenhuma, e que por isso eu não trabalhava com atores profissionais, então tinha uma bronca comigo. Mas não é nada disso. Eu não vou levar ator profissional porque, além de ter de pagar muito mais, tem certos atores que até pelo biótipo do personagem vai ficar meio difícil ele fazer o que eu quero.

Eu gosto de experiência, eu gosto de vanguardagem mesmo, o problema é esse. Eu gosto de vanguardagem, seja lá no que for. Tanto que eu acho que os tempos hoje são diferentes de ontem, e vai caminhar assim porque a história sempre está se renovando, eu acho que isso é bom, mesmo que a gente possa quebrar, tropeçar pelo caminho.

É que eu toda vida devo ter sido dessa maneira e pensado dessa maneira, um pouco aí esquerdando ou sei lá, essa coisa toda. Acho que eu sempre fui meio isso, sempre gostei de vagabundagem, bebia, andava por aí, classe média nunca... Por exemplo, o Plínio Marcos, todos os personagens das peças dele, os caras, os vagabundos dele, os pobres dele estão sempre pensando em ser classe média, fazem uma força para isso. Os meus não, os meus estão querendo viver, sabe? Se chegar lá, paciência, se não chegar, já viveram, não é? Eu acho isso. Agora lembrando que eu vivi nisso, naquilo, morei em cortiço, tive aquele negócio de escola, de chofer particular, tive uma boa época sim, e também nessas épocas eu era dono de uma bola de capotão, tipo oficial, eu até jogava e dava uma de juiz também.

Esse negócio de eu fazer quase todas as funções do filme é o seguinte: nunca gostei de pedir nada pra ninguém, sabe? Não é por nada não, acho que se eu puder fazer, eu faço e pronto. Mesmo quando andava meio casado, juntado, amancebado, eu nunca pedia muito da mulher: “Faz café”, “Vai buscar isso”. Fazia eu mesmo.

Eu é que faço tudo, não adianta. Qualquer diretor, isso é da competência dele cuidar de toda composição, todo movimento de câmera, toda distância focal, é tudo do diretor. Ou ele sabe ou ele não sabe. Agora, se ele não sabe, ele pega um Portioli ou um Eliseo e leva...

Eu não quero fazer imagem bonitinha. Eu ponho o que está ali, o que aconteceu, e se não é muito normal, melhor pra mim. Eu tenho um pouco isso de querer filmar as coisas do jeito que elas são. Acho que isso é que tem sentido, é uma vocação meio documental. Como nas minhas fotografias: não sou fotógrafo, não estou preocupado com um tipo de composição. Se isso é arte ou deixa de ser, não sei o que é arte ou deixa de ser, minha vocação é pra documentação.