A HERANÇA

Ficção, 1971, 35 mm, P&B, 90 min

 
 

 

 

Adaptação de Hamlet, de Shakespeare, para o Centro-Sul brasileiro do início do século XX. Omeleto, um rapaz filho de senhores do sertão, vai para a capital com o objetivo de estudar e fazer-se doutor. O pai morre e ele volta antes do esperado, encontrando a mãe casada com o irmão do pai. O falecido volta do além e conta para o filho que foi assassinado, o rapaz promete vingança a fim de que a alma do pai possa descansar em paz.

Hamlet já foi interpretado por grandes atores como Lawrence Olivier, John Barrymore, Richard Burton e até Sarah Bernhardt e Asta Nielsen travestidas. E o filme foi dirigido por gente competente (ou quase) como Olivier, Kenneth Branagh, Tony Richardson, Grigori Kosintsev e Franco Zeffirelli.

Mas certamente em nenhuma oportunidade foi adaptado de modo tão livre e atrevido como no Brasil de 1970, onde, em plena Boca do Lixo paulista, Ozualdo Candeias escreveu, dirigiu e fotografou A herança.

 

Tinha tudo para dar errado, a começar pelo elenco heterogêneo: um sex symbol popularesco (David Cardoso), um rouxinol da música brega (Agnaldo Rayol), uma atriz televisiva de rosto marcante e estilo denso (Bárbara Fazio), vários ilustres desconhecidos. Como se não bastasse, a tragédia do príncipe da Dinamarca é transposta para o meio rural brasileiro numa paródia do western italiano, na qual os nobres são transformados em caipiras ou fazendeiros. Ofélia, por exemplo, é uma bela mulatinha, e o trunfo da peça, a prosa poética do mestre Shakespeare, foi substituído por legendas nos monólogos interiores dos personagens. O resto é silêncio.

 

Mas, diria o dramaturgo, há mais coisas entre o céu e a terra do que supõe nossa vã filosofia. O resultado é mais que satisfatório, chega a ser surpreendente. A herança é ainda mais estranho que A margem, o primeiro longa do diretor, e não tem a explícita poesia deste; é de uma estranheza áspera, que chega a incomodar. Em certos momentos, estamos bem próximos das primeiras cenas de Deus e o Diabo, do Glauber, e quase sempre, da totalidade de Augusto Matraga, do Roberto Santos, inclusive no uso da música cantada como auxiliar narrativo.

Músicas emblemáticas (cirandas infantis, marchas fúnebre e nupcial, “Sertaneja” de René Bittancourt), lindamente tocadas como moda de viola. E ainda ruídos da natureza (ventanias, chuvaradas), vozes de animais, gargalhadas debochadas do protagonista. No único momento em que a palavra conduz a ação (no circo, onde Omeleto denuncia o assassinato do pai), temos uma canção caipira cheia de som e de fúria.

 

Apesar de tudo, o enredo shakespeariano está presente em quase todas as seqüências. Ao descobrir que o pai foi assassinado pelo tio, que casou com a mãe (revelação feita pelo fantasma do falecido), o protagonista finge-se de louco. Mais tarde, mata sem querer o pai de sua amada, que enlouquece e depois morre afogada. Na carni ficina final, morrem todos. Na peça, a herança vai para um parente. Na versão de Candeias, a fazenda é dividida entre os trabalhadores rurais. Ser ou não ser original, eis a questão.

João Carlos Rodrigues

Direção, roteiro e fotografia: Ozualdo R. Candeias.

Montagem: Luiz Elias.

Música: Fernando Lona e Vidal França.

Produção: Cleuza Rillo, Antônio Alves Cury, Otávio Fernandes e Virgílio Roveda.

Cia. produtora: Long Filmes Produções Cinematográficas.

Elenco: David Cardoso, Bárbara Fazio, Agnaldo Rayol, Zuleica Maria, Túlio de Lemos, Américo Taricano, Antônio Lima, João Batista de Andrade, Rubens Ewald Filho, Jean Garret e Rosalvo Caçador.