David Cardoso

 
David Cardoso e Candeias durante as filmagens de A herança.

Minha carreira, começou em 1963, quando havia aproximadamente 25 diretores de cinema, com estilos diferentes. O mais diferenciado, mais primitivo, e talvez o mais intuitivo, chamava-se Ozualdo Candeias. O primeiro filme que fiz com ele foi A herança. Ele me convidou para ser o ator principal desse Hamlet tupiniquim, e até nisso surpreendeu, porque eu era a única pessoa mais ou menos famosa no elenco. Ganhei o prêmio de melhor ator de 1971, e, segundo os críticos, com esse filme dei um salto em minha carreira. A herança foi considerado uma das melhores adaptações de Shakespeare para o cinema, porque era completamente diferente de tudo que fora feito até então. Candeias seguiu a linha de raciocínio da história a seu modo, quer dizer, de modo pessoal, tanto que a Ofélia é uma negra.

As pessoas que assistem ao filme ficam maravilhadas com aquilo, ou detestam. O Candeias me dizia: “você segue o que esta aí, mais ou menos escrito, eu vou te dando as orientações”; e ficou contente com o meu trabalho. Deve ter sido um choque para as pessoas que acompanhavam o cinema brasileiro e a minha vida, e sou muito grato ao Candeias, porque é um marco na minha história, na história do rei da pornochanchada brasileira.

Além de A herança, que era uma produção dele, o outro que fiz com ele foi Caçada sangrenta. Como eu tinha certo receio de dirigir meu primeiro filme como produtor (era produtor e também ator), convidei o Candeias e apresentei-lhe a linha que imaginava seguir. Formamos uma equipe pequena, com atores daqui da Boca de São Paulo. Algumas coisas estavam de acordo com o que eu queria, outras com o que ele que-ria. Aprendi muito com o Candeias, e talvez ele tenha aprendido muito da pornochanchada comigo; ele não a abraçava, mas forçosamente teve que ceder e colocar um pouco dela nos filmes, à sua maneira. No set, o relacionamento com ele era muito tranqüilo. Candeias é um cara de diálogo, um diretor calmo, mas é ele quem dita as regras. Quando o filme é de autoria dele, prevalece a sua maneira de filmar, e ele é realmente um diretor intuitivo e criativo.

Como diretor, deixava os atores muito à vontade. Em A freira e a tortura, tínhamos um roteiro pré-esta-belecido, com texto e tudo, mas o ator que devia fazer determinado personagem não apareceu: Candeias olhou para o assistente de produção, um camarada de físico avantajado, barriga grande, ombro estreito, e falou: “Você vai fazer o papel”. O camarada fez e ficou uma coisa criativa.

Como ator, diretor, gerente de produção, ele funciona da mesma forma: é um cara que não dá prejuízo, que entende os problemas de um filme nacional. Faz um cinema marginalizado em todos os sentidos; gosta do cinema underground, do cinema que mostra a realidade, que desmistifica as coisas; e é marginal porque é sem grana, sem dinheiro, tudo com muita dificuldade.

Convidei o Candeias para dirigir A freira, porque achei que essa história, baseada no livro do Jorge Andrade, era a cara dele. Era um assunto polêmico (um delegado corrupto, corruptor, que se apaixona por uma freira, na época da ditadura: é uma história mais ou menos verídica). O filme fez mais sucesso na Argentina do que aqui, lá se chamava La monja e la tortura. Não fiz um filme como costumava, fiz um filme político, uma história do Jorge Andrade, com direção, roteiro e iluminação do Candeias, apesar de ele ter um diretor de fotografia.

Dezenove mulheres e um homem foi a fita mais rentável da minha carreira. Ody Fraga foi o grande mentor intelectual das minhas produções: escrevia o roteiro, fazia o primeiro tratamento, corrigindo algumas coisas. Foi uma pessoa que me ajudou muito. Convidei o Candeias para participar da produção e para fazer o bandido principal – mas ele era uma espécie de faz-tudo, fazia inclusive as fotos de cena que eu mandava para os jornais.

Sobre Ozualdo Candeias, acho importante reforçar sua história de vida, a de um cineasta brasileiro que saiu do nada, que se fez sozinho, em todos os sentidos. No gênero de filmes que eu fazia era mais fácil sobreviver, e eu consegui de certa forma, mas no gênero dele era bem mais difícil, porque é um cinema fechado, com suas próprias idéias. Se Candeias tivesse nascido em outro país, com suas idéias, sua força, sua forma de dirigir, teria sido mais reconhecido – e financeiramente estaria numa situação invejável. Mas ele não ligava para isso, porque a vida dele era simples de verdade. E é desse seu interior tão forte, que surgem todas as verdades que expõe nos filmes.