Portal Brasileiro de Cinema  Três notas sobre o que está no centro da margem

Três notas sobre o que está no centro da margem

José Carlos Avellar


 
Cartaz do filme, Cine Marabá.

1. Antes de mais nada, São Paulo, o centro econômico e também o que ele exclui. O centro industrial e mais o que nem chegou a se esboçar como indústria: o cinema. O cinema e o modelo de ficção criado especialmente pelos filmes da Vera Cruz e que, de certo modo, se manteve como ponto de referência do espaço que vai de Walter Hugo Khouri a José Zaragoza, passando por Chico Botelho, Wilson de Barros e Guilherme de Almeida Prado.

 
Mário Benvenutti, A margem.

Para melhor perceber o cinema de Ozualdo Candeias, e particularmente seu primeiro filme, convém inseri-lo neste contexto: São Paulo, 1967, entre o Cinema Novo e o Cinema Marginal, pouco depois da Vera Cruz, pouco antes da pornochanchada, entre o Instituto Nacional de Cinema e a Embrafilme – para usar apenas referências cinematográficas; entre o golpe de 1964 e o ato institucional nº 5 de 1968, para resumir o quadro político. Não porque o filme seja coisa datada, preso ao instante em que surgiu e que se esgote nele, mas porque o conhecimento do tempo que ele enfrenta ajuda a revelar, ao lado do que ele mais ou menos se propôs a realizar, tudo aquilo que incorporou da tensão e da invenção que o vento ia levando pelo ar. Para melhor compreender o que ele nos diz hoje, convém percebê-lo primeiro como expressão da São Paulo do final dos anos 60. Inseri-lo nesse contexto, mais no que esse contexto exclui do que propriamente no que o constitui – exclusão aqui entendida como parte integrante da força excludente e não apenas como o que dela se desprendeu ou foi jogado fora, e deixou de pertencer a qualquer centro. É como se a busca de constituir uma indústria, um cinema brasileiro culto, bemcomportado e de padrão internacional, tal como empreendida pela Vera Cruz, tivesse gerado também uma forma bruta deselegante, entre o ingênuo e o desarticulado, e com um quê de grotesco, assim como todo centro gera sua margem e estabelece com ela uma relação de interdependência. Quando o primeiro filme de Candeias bate na tela encontra toda a gente do país – tal como seus personagens e, principalmente, como o narrador – confinada à margem pela ditadura. Seu jeito mais de cinema silencioso que sonoro, mais fragmentado que contador de histórias, parecia mostrar como todo o país então se sentia, cinema emudecido. Podia ser sentido assim como diz o poema que Torquato Neto compôs: “Agora não se fala mais/ Toda palavra guarda uma cilada/ E qualquer gesto é o fim/ Do seu início”. Podia ser sentido como um cinema impossibilitado de se mover, de construir uma história, porque voltado para os que não importam para a história. Pouco provável que essa sensação tenha sido percebida dessa maneira. Pouco provável que os primeiros espectadores tenham se dado conta disso, como formulado aqui, mas sem dúvida experimentaram certo incômodo durante a projeção.

Como se tentasse dizer algo que ainda nem foi pensado por inteiro, o filme se expressa através de imagens inacabadas. Quer dizer, as imagens estão lá, como foram concebidas, inteiras, completas, mas, conscientemente ou não, pouco importa, se mostram como formas que só se articulam, que só revelam seu real significado, na cabeça do espectador. E então, roteirista, montador, co-diretor, o espectador, ou porque participou criativamente durante a projeção, completando as imagens tal como o filme solicitara, ou porque recusou a construção em aberto, por uma razão ou outra, se descobre um excluído. Entrar no filme é sentir-se do lado de fora. E assim se sente todo espectador, até mesmo aquele que não o viu mas entendeu a oposição ao ideal de desenvolvimento, de progresso, de integração nacional, de país que vai pra frente, que então se montava, oposição desenhada na imagem-título: A margem.

2. Como toda imagem de cinema é duas, é ela mesma e mais o que ela não é; o que está em quadro e o que está fora dele. Em certa medida, os miseráveis às margens do Tietê representam também o que não se vê, a força marginalizadora do poder: a margem é a imagem do centro. Os militares, pouco antes de colocar o general Costa e Silva no comando geral do país, em março de 1967, ditaram nova Constituição, nova lei de segurança nacional, nova lei de imprensa, criaram a AERP (Assessoria Especial de Relações Públicas para a Presidência da República) e determinaram: eleições indiretas. Todo o país empurrado para a margem, reduzido a espectador; chegara “a hora de dar ao público a chance de deixar de ser público espectador de fora para participar da atividade criadora. É o começo de uma expressão coletiva”, escrevia Hélio Oiticica no catálogo da Nova Objetividade Brasileira, exposição realizada no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, em abril de 1967. Hélio apresentava então a Tropicália e os Parangolés que criara, e defendia a invenção de uma antiarte: “a obra de arte criada, o objeto de arte, é uma questão superada, uma fase que passou”. Logo em seguida, em maio, Glauber lançava Terra em transe, estimulando a produção de filmes “bárbaros, explosivos, radicais, antinaturalistas” e o desenvolvimento de novas linguagens para dar ao espectador “o que ele necessita para desvendar-se enquanto homem, processo, política”. José Celso encenava O rei da vela e falava em guerrilha teatral para colocar “o público cara a cara com sua miséria, a miséria de seu pequeno privilégio feito de tantas concessões”, para transformar o espectador, levá-lo a reinventar o teatro e a si mesmo. Ao lado de Glauber e pouco depois do Pasolini de Accatone e de O evangelho segundo São Mateus (Candeias poderia, como Glauber, falar de “comuns identidades bárbaras tribais”, como o cinema de Pasolini); ao lado do Sanjinés de Ukamau e pouco antes do Bressane de Cara a cara e de O anjo nasceu; pouco antes do Dahl de O bravo guerreiro e pouco depois do Diegues de A grande cidade; pouco antes de Solanas e Getino se inspirarem em Frantz Fanon para sublinhar em La hora de los hornos que “todo espectador é um covarde ou traidor”; e também antes de Julio García Espinosa formular a teoria de um cinema imperfeito, contrário ao modelo de perfeição imposto pelos grandes centros produtivos, de defesa de filmes abertos, incompletos, para serem articulados na cabeça do espectador.

A margem surge nesse espaço e dialoga natural e espontaneamente com tudo isso, com os filmes exibidos naquele momento e também com os que seriam feitos adiante, a partir do que já estava ali como tensão ou projeto, como os filmetes de propaganda política da AERP. A margem mostra o que os personagens de Cara a cara e de O bravo guerreiro, centrados em si mesmos, escondem. Mostra o que apenas se insinua num canto da história de Terra em transe. E, quase da mesma forma com que essas duas imagens críticas da briga política pelo poder se organizavam, a partir da imagem/ausente das pessoas comuns, o filme de Candeias se estrutura em torno da imagem/ausente do poder, muito provavelmente sem que isso seja resultado de uma decisão consciente. A partir dessa imagem/ausente, Candeias compõe outra visão do que o centro empurrou para a margem, diferente daquela já apresentada pelo Cinema Novo (A grande cidade, Jasão e Calunga) e da que será apresentada adiante pelo Cinema Marginal (O anjo nasceu, Santamaria e Urtiga): nem uma projeção da consciência política em estado bruto nem uma projeção da violência suicida em estado bruto. Aqui, só o estado bruto.

 
Bentinho e Telé em A margem.

3. À margem. Objeto não-identificado. Primitivo. Descentrado. Fora de ordem. Fora do tempo. Sem órbita. Força bruta. Vazio. Uma desarrumação que radicaliza o sentimento cantado pouco antes pelos estudantes (“é um país subdesenvolvido”) e também a ação pregada por Deus e pelo Diabo (“desarrumar o arrumado”). O que importa em A margem não é propriamente o que se vê. Quer dizer, o que se vê interessa, sim: conta a história de umas tantas pessoas empurradas para fora da cidade. Mas, principalmente, o que se vê aparece como imagem que, por cima do que revela, passa uma sensação forte de que não está lá: não é a página, é o branco em volta, é a idéia de ausência, é o vazio que dá margem à invenção da imagem. E é justamente por isso, porque crítica do centro – e crítica visceral, que se faz numa linguagem, se não incompreensível, pelo menos inaceitável pelo centro; porque provocação, impulso para a invenção cinematográfica, convite à imagem –, que a conversa que o filme propõe ao espectador continua viva hoje. Ela, na verdade, permanece como exemplo de cinema (imperfeito? ganga bruta?) a ser lapidado pelo espectador, e se renova com força sempre que adota academicamente as regras do jogo dominante, e se insinua como o bom modo de ver as coisas. Aí, então, A margem se revela o centro da questão cinematográfica.