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Preservar Candeias

Carlos Roberto de Souza

 

Em 1976, a então Fundação Cinemateca Brasileira passava por uma revolução: alguns ex-alunos de Paulo Emílio Salles Gomes haviam decidido ver “como era essa coisa de cinemateca” e, arregaçando as mangas, tentar fazer com que a instituição renascesse das cinzas. O grupo era formado por Carlos Augusto Calil, Sylvia Bahiense Naves e eu, e, com o entusiasmo de nossa juventude, havíamos literalmente arrastado Paulo Emílio de volta à Cinemateca. Ele, por seu lado, convocou os amigos e antigos colegas da Faculdade de Filosofia (Antonio Candido de Mello e Souza e Décio de Almeida Prado) e, em meados da década de 70, conseguimos reconstituir o grupo central do Clube de Cinema de São Paulo que, em 1940, foi a semente do que posteriormente se transformaria na Cinemateca Brasileira. Na tentativa de envolver as diferentes esferas do poder público no assunto da preservação da memória cinematográfica do país e captar recursos para o ressurgimento da Cinemateca, Paulo Emílio encontrou uma resposta positiva na pessoa de Manoel Diegues Júnior – pai do cineasta Carlos Diegues –, que então dirigia o Programa de Ação Cultural do Ministério da Educação e Cultura. Um convênio assinado com o PAC permitiu os trabalhos preliminares de organização do acervo fílmico e documental e o início da implantação do Laboratório de Restauração da Cinemateca. Os recursos foram sendo gastos com parcimônia e, terminado o prazo para a aplicação do dinheiro, havia uma pequena sobra da verba concedida. A unanimidade era no sentido de não se devolver dinheiro – para não parecer que ele era desnecessário –, mas a solução encontrada por Paulo Emílio provocou certa polêmica: adquirir a propriedade física e os direitos de veiculação cultural de filmes brasileiros. Alguns de nós pensávamos que não cabia à Cinemateca, sempre carente de recursos, comprar filmes, e que se deveria reforçar cada vez mais o procedimento de os produtores depositarem seus filmes na instituição. Em todo caso, a posição de Paulo Emílio foi a vencedora, e a Cinemateca tornou-se proprietária, entre outros, dos negativos originais de A margem, A herança, Zézero, Candinho, Uma rua chamada Triumpho 1969-70 e Uma rua chamada Triumpho 1970-1. Dessa forma, preservar a obra do Ozualdo Candeias é uma questão de responder à missão institucional de zelar pela memória cinematográfica nacional em seu conjunto e também de cuidar da conservação do patrimônio que lhe é próprio.

Desde sempre soubemos da fragilidade da película cinematográfica e dos cuidados que envolvem sua conservação. No caso dos filmes de Candeias, porém, o assunto adquire dimensões assustadoras: trabalhando na Boca do Lixo paulistana, em condições de produção precárias, várias vezes ele lançou mão de filme virgem de diferentes origens e marcas, eventualmente com data de validade havia muito ultrapassada. Isso confere aos originais dos filmes um complicador adicional de preservação, pois cada fragmento do negativo original montado se comporta de maneira diferente, ou seja, existe uma deterioração desigual no interior do mesmo objeto.

Sirva como exemplo dessa fragilidade um filme específico, Aopção ou As rosas da estrada, cujos negativos Candeias depositou na Cinemateca Brasileira em 1982, poucos meses depois de o filme haver sido completado. A essa altura, poucas cópias do filme haviam sido feitas, inclusive a exibida no Festival de Locarno, que valeu um prêmio ao diretor, e apesar de o negativo original ter sido muito pouco manipulado, ao entrar na Cinemateca e ser examinado, recebeu o grau técnico 2B, isto é, “os danos físico-químicos observados têm muita intensidade ou quantidade, deixando o material frágil para uso”. As anotações feitas pelas revisoras da época (“negativo original montado com material sensível de qualidade heterogênea; exige cuidados especiais de manuseio, muitos reparos feitos com durex; sinais de esmaecimento, alguns planos já no limiar em estado de desplastificação”) mostram que diferentes atitudes de preservação devem ser tomadas com cada fragmento de material do negativo original de imagem, que tem de ser duplicado diferentemente de forma a gerar um material com a melhor qualidade possível.

Por outro lado, ironicamente, podemos dizer que a “marginalidade” de Candeias com relação aos circuitos de exibição comercial colaborou com a preservação dos negativos de seus filmes. Explicando melhor: como os filmes de Candeias, salvo raras exceções, nunca foram sucesso de bilheteria, em geral foram feitas apenas duas ou três cópias deles, o que preservou os negativos originais, extremamente frágeis, dos danos físicos que apresentariam caso fossem tiradas muitas cópias. São célebres os casos de grandes sucessos, como Pixote, de Hector Babenco, que tiveram seus negativos desgastados pela copiagem excessiva. (Diferentemente das produções americanas, que guardam as matrizes originais em cofres e fazem as cópias de exibição a partir de contratipos, no Brasil essas cópias são tiradas diretamente dos negativos originais.) Além das características específicas dos originais de Candeias, não podemos deixar de relatar dois acontecimentos inéditos ocorridos no histórico dos trabalhos de preservação da Cinemateca Brasileira, sendo que um deles se deu no próprio Laboratório de Restauração, em 1981. Nessa época, sem recursos para a compra do filme virgem necessário à duplicação de materiais deteriorados, procedeu-se a um enorme trabalho de reprocessamento das matrizes em preto-e-branco existentes na coleção. Essa iniciativa teve por objetivo remover os resíduos de hipossulfito de sódio existentes nos filmes (resultantes da lavagem apressada dos negativos em laboratórios comerciais), que, a médio prazo, afetam a imagem, provocando o esmaecimento e acelerando o processo de desplastificação do suporte quando os filmes não são guardados em câmaras com temperatura e umidade controladas. Durante essa operação, que processou milhares de metros de filme, houve um único acidente quando, por defeito mecânico, a máquina de lavar em operação travou e o material que estava sendo lavado rompeu-se em sete pontos. O filme que estava na máquina era o negativo original de Uma rua chamada Triumpho 1970-1. Por felicidade, algumas semanas antes havia sido feita uma cópia a partir desse negativo, que foi imediatamente transformada em matriz de preservação. Infelizmente, porém, os desastres que atingiram a obra de Candeias não pararam por aí, e foram bem mais sérios. No final de 1982, recebemos um telefonema de José Borba Vita – um dos sócios da Líder Cine Laboratórios – informando que o laboratório havia sido alvo de um ato de vandalismo. Não fora um roubo, porque não havia nada a ser roubado, mas os invasores se apoderaram de algumas latas de filme, desenrolando as bobinas e espalhando as tiras, rasgando e pisoteando centenas de metros de película. As “vítimas” haviam sido A margem e A herança, que estavam no laboratório para serem copiados. Do primeiro, perderam-se seis partes do negativo de imagem e três do de som; do segundo, três do negativo de imagem e quatro partes do de som. Nunca foi possível determinar claramente por que apenas os filmes de Candeias haviam sido inutilizados. A preocupação de Vita era providenciar uma nova matriz antes que Candeias fosse informado do incidente. A Cinemateca, então, enviou à Líder as melhores cópias em 35mm desses filmes e o laboratório manufaturou a partir de ambas os contratipos combinados (som e imagem), que passaram a ser as matrizes.

Esses episódios não esgotam a problemática de preservação que envolve a obra de Candeias. Mesmo nos casos em que matrizes de imagem e som foram depositadas ao mesmo tempo, é habitual os créditos de apresentação estarem separados dos negativos, ou terem desaparecido, e terem de ser duplicados de cópias de exibição. Existe ainda o caso do filme A visita do velho senhor, em duas partes: os negativos em 35mm da primeira, um table top sobre os desenhos de Poty que serviram de argumento para o curta, desapareceram, e a nova matriz da parte faltante passou a ser um contratipo ampliado a partir de uma cópia em 16mm.

Fui me dando conta da enorme e diversa quantidade de problemas que envolvem a preservação da obra de Candeias ao preparar a relação dos materiais disponíveis para exibição nesta retrospectiva. Praticamente nenhum dos filmes está isento de problemas, em geral diferentes entre si. O caso mais absurdo me pareceu ser o vídeo que Candeias fez sobre a Cinemateca Brasileira, realizado com equipe da própria Cinemateca e gravado em superVHS – escrevi o texto da locução (feita por Tânia Savietto, então diretora executiva da Cinemateca) a partir de indicações muito precisas de Candeias . O editor, José Carvalho Motta, então chefe de Catalogação da Cinemateca, possuía um equipamento de edição limitado, que obrigava que cada cópia fosse feita artesanalmente, uma a uma. Somente a partir das necessidades levantadas para esta retrospectiva, uma década após a realização do trabalho, foi feita uma matriz definitiva do mesmo, reunindo-se a banda da imagem com a trilha musical e a banda com a narração, que estavam separadas desde que o vídeo havia sido completado.

Nenhum dos percalços narrados aqui, contudo, provocou qualquer estranhamento nas relações que Ozualdo Candeias sempre manteve com a Cinemateca Brasileira. Ao longo dos anos, esse sofisticado realizador nunca perdeu a consciência da importância de sua obra, e manteve a preocupação constante de nos encaminhar matrizes e cópias – freqüentemente únicas – com o objetivo de pre-servá-las. Lembro-me de Candeias chegar várias vezes à Cinemateca, com seu jeitão simuladamente simplório, uma lata embaixo do braço, e dizer: “Encontrei esse filme não sei onde. Foi um negócio qualquer que fiz para Fulano. Não sei se interessa pra vocês guardarem”. Sempre interessou. De certa forma, preservar a obra de Ozualdo Candeias, com sua variedade de problemas técnicos, sintetiza o leque de desafios colocados pela questão de se preservar o conjunto do cinema brasileiro. Esse artesão hábil, realizador de filmes construídos com uma linguagem cinematográfica extrema-mente requintada, sem concessões, ainda procura seu público. Cabe a nós, profissionais da preservação, cuidar para que seus filmes continuem existindo, que possam ser vistos e que encontrem um número cada vez maior de espectadores e entusiastas do retrato que traçam do Brasil.