O marginal

Carlos Augusto Calil

 
Bentinho e Lucy Rangel em A margem.

Num cinema como o nosso, que dispõe de um elenco ainda reduzido de manifestações relevantes, chama a atenção o desinteresse da crítica e da universidade para com a obra impressionante de Ozualdo R. Candeias. É possivelmente o último dos grandes nomes que continua território a ser explorado. Paulo Emílio dedicou, em 1973, uma resenha a Zézero (v. reprodução neste catálogo). Nela identifica algumas linhas de força: emanações de certo anarquismo, uma “crua desesperança”, e, pesem as inusitadas cenas de sexo, um antídoto contra a pornografia então reinante. Reconhece em Candeias um “artista original e profundo”.

Difícil entender a incapacidade da crítica contemporânea de se aproximar dos filmes de Candeias. Premiado no país em 1967 e 1971, com A margem e A herança, logrou conquistar com Aopção, o Leopardo de Bronze no Festival de Locarno (Suíça), em 1981.

Mesmo o movimento que hoje promove a valorização do então chamado Cinema Marginal, dedica-lhe papel secundário, a julgar pela mínima bibliografia. É provável que o insuspeito crítico Jairo Ferreira, autor de Cinema de invenção, tenha acertado quando o classificou de “marginal entre marginais”. A permanência de tal situação, no entanto, depõe contra o sistema que vem regendo esse movimento de reavaliação, enquanto projeta uma luz inusitada sobre a obra de Candeias, revelando uma esfinge a desafiar nossa análise.

Ozualdo Candeias surgiu em 1967 com um filme inesperado, feito com um mínimo de recursos: A margem. Vivíamos um tempo de radicalização política e o filme apareceu como um libelo poético sobre os deserdados da sociedade urbana. O título da obra continha o germe do movimento que só se firmaria depois.

Duas personagens monopolizam os fios do enredo desse filme: um louco manso e uma noiva negra, abandonada no altar. À margem do rio Tietê, na favela em que vivem, compartilham seu infortúnio com um janota maltrapilho. O destino inelutável acabará por reuni-los na grande barca que os transporta desta para outra vida, em que esperam encontrar a redenção. Uma sincera compaixão pelas personagens e um forte acento metafísico dão ao filme um tom de iconoclastia doce. Que ninguém se engane: essa doçura não irá durar.

Mais próximo de seu universo de predileção, pela vertente do regionalismo, o segundo grande filme de Candeias foi Meu nome é Tonho. Filme de gênero, aclimata o faroeste italiano, então em plena força comercial, ao sertão do Sul/Sudeste do Brasil.

Um investimento mínimo possibilita cuidados na produção: Paulinho Nogueira é contratado para criar a música; Peter Overback, na fotografia, torna-se responsável por uma câmera ágil e sempre bem posicionada; Bibi Voguel, atriz em ascensão, surge como principal figura feminina.

Anos 20, lugar incerto do sertão, o bando de Manelão apavora. O nome recorrente evoca o bandido da infância de Candeias, cuja recriação tanto pode retratá-lo poderoso, vaidoso, cruel e inconseqüente, o Manelão de Meu nome é Tonho (1969), como um pobre coitado, preso a uma dívida contraída de um proprietário, para tratamento de uma doença venérea, caso de Manelão, o caçador de orelhas (1982).

O Manelão de Meu nome é Tonho age com discernimento criminoso: invade o cartório, pergunta ao escrivão se determinadas pessoas tinham escritura de posse de suas fazendas. Diante da negativa, proclama sorrindo: “Então as terras são minhas”. Com seu bando, assalta aquelas fazendas, mata os donos, rapta meninas e moças, apropria-se de móveis e gado. Tudo executado entre risos bestiais. O único componente humano parece reservado ao bandido que se aplica em cumprir rapidamente o dever de exterminar, na defesa do princípio de que a morte cai melhor quanto mais rápida, para a vítima não sofrer...

Nesse mundo primitivo e masculino, de corridas de cavalo, de humilhações e escárnio, amor e sexo estão ainda separados. O amor está reservado para a bela prostituta, interpretada por Bibi Voguel, que desperta a consciência de Tonho, pela insinuação do incesto que involuntariamente acabam de praticar. O sexo ocorre num encontro fortuito de viajantes numa estrada. O garanhão de um cobiça a égua do outro. Apeiam ambos e se comprazem com o espetáculo proporcionado pelo instinto animal. Nessa fronteira entre o humano e o animal, as personagens não têm nome, pois não possuem identidade: Mineiro, Gaúcho, Risonho, são na verdade nomes de bichos.

A cruel vingança de Tonho, no entanto, não é deflagrada pela consciência dos males infligidos a sua família pelo bando de Manelão. Surge como reação à intimidação dos jagunços, que o interpelam como o “babaca” que os frustrou ao ganhar a corrida de cavalos. Entre risadas de escárnio, estabelece-se uma fuzilaria em que são exterminados todos os jagunços, bem ao estilo do exagerado faroeste italiano.

Tonho busca o resto do bando na cidade. Obriga-os a dançarem uns com os outros e a tirarem as calças. Mata-os implacavelmente. Num duelo assimétrico, em que Tonho ataca montando seu cavalo, Manelão, a pé, acaba morto. A moça prostituta se sente finalmente livre do jugo do bandido, e reconhece em Tonho seu salvador. Procura por ele, mas ele foge da irmã, agora ciente da revelação do tabu do incesto. O drama de Tonho é, pois, a conquista da dimensão humana pela absorção do padrão cultural. Evolução de um comportamento puramente animal, instintivo, para outro, lastreado na consciência moral.

A herança (1971) é uma adaptação muito particular do Hamlet, de Shakespeare. Candeias considera o drama de Hamlet insuficiente. E altera radicalmente seu desfecho: quando Fórtimbras, vestido de caubói, chega ao teatro da batalha em que sucumbiram o fazendeiro-rei, o príncipe-herdeiro e a rainha-mãe, depara-se com uma carta-testamento (alusão a Getúlio, pai dos pobres?), em que o herdeiro (David Cardoso) explicita seu desejo de que as terras “sejam entregues àqueles que nela trabalham e nela nasceram”. Fórtimbras (Agnaldo Rayol), contrariado em seu interesse sucessório, ruge como um leão, e parte furioso. Os rostos sulcados dos camponeses revelam surpresa com tal desfecho. E, respeitosamente, recolhem o corpo do filho do fazendeiro numa carreta e demandam o cemitério.

Nessa tradução de Elsenor para o Fazendão houve redução deliberada da dimensão metafísica e existencial para compensar a ênfase no político. Uma caveira de boi substitui a caveira de um presumido homem ilustre. Ouve-se na trilha um arremedo de “to be or not to be”, sem qualquer reverência ao célebre dito. A humana condição reduzida ao animal.

Numa operação premonitória, Candeias transforma em negros Ofélia e seu irmão Laertes. A aposta no multiculturalismo, antes da moda internacional, permite ainda a Candeias tratar da loucura de Ofélia, numa chave poética. O bebê que ela nina é na verdade um cacho de bananas embrulhado em xale de criança.

A recusa do texto de Shakespeare corresponde à negação da fala no filme. Esta é substituída por grunhidos e ruídos. Uma grande exceção: Candeias de tanto insistir com moda de viola na trilha musical, acaba capitulando diante da harmonia dos versos de Fernando Lona na cena circense em que, a pedido de Hamlet, os saltimbancos proclamam o libelo contra o tio-fazendeiro-usurpador. Embora cantada, ou exatamente por isso, a palavra vence, nesse momento.

Algumas cópias de A herança circularam com legendas, por imposição dos exibidores. Apesar disso, elas são em número reduzido, reproduzindo trechos da peça, adaptados à linguagem corrente. Eis como ficou o desabafo do herdeiro-moribundo, lido numa legenda: “Deve haver mais coisa entre o céu e terra que a nossa já estúpida filosofia”.

Em A herança, Candeias rejeita o sistema de valores predominante. Para ele, a literatura e a alta cultura atuam na manutenção dos privilégios de classe, por meio de expedientes como o direito à herança.

A busca de Candinho

Candinho é um idiota, débil em tudo, que não fala, e, como se não bastasse, manca. Como a personagem interpretada por Bentinho em A margem, procura por algo, uma integridade jamais alcançada, uma nostalgia de pureza. Por isso, abandona o seu meio rural para buscar o Messias, do qual possui um santinho, com sua imagem.

 

Chega à grande cidade, lugar de vícios e degradação. Não encontra seu Messias em nenhuma igreja de nenhuma religião. Depara-se em seu caminho com deserdados da razão e da fortuna: uma boliviana, cujo bebê é uma boneca, e com quem compartilha um prato de comida, feito de uma lata de filme resgatada do lixo, e um índio penosamente aculturado, que, graças a uma fantasia feliz, faz de um reles tijolo seu rádio de pilha.

Esses e outros tipos bizarros protagonizam situações grotescas em que o sexo apressado já não guarda nenhuma possibilidade de ensejar o amor. A mulher se prostitui para alimentar a família, que mora na rua, composta de duas crianças e um pai alienado. Pratica um sexo rústico e mercantilizado, em que não cabe idealização ou prazer. Numa das cenas mais chocantes desse filme implacável, essa mulher, após o coito, limpa seu sexo com um jornal francês. Poucas vezes se viu cena tão contundente no desprezo pela cultura estrangeira.

 

 
Valéria Vidal em A margem.

Após vivenciar sucessivas experiências de frustração, finalmente chega o momento culminante para Candinho, seu encontro com o Cristo, anunciado na trilha sonora com o “Jesus, alegria dos homens”, de Bach. Esse Messias, que se assemelha ao retrato do ícone é na verdade indiferente ao sofrimento dos pobres e aflitos. Para frustração de Candinho, o comportamento do Cristo revela uma intimidade com os poderosos em que não faltam servidão e cumplicidade.

Candinho rasga o santinho e vaga pela periferia até encontrar uma cruz, na qual se pendurou uma metralhadora. Esta retém sua atenção e a da boliviana. Ouvem-se ruídos de tiros de repetição. Anúncio da revolução?

Arriscado sugerir filiação estética a uma obra que renega qualquer sentimento de pertinência, mas o Cristo pervertido de O Candinho parece ter saído de A idade do ouro, do Buñuel anticlerical, antiburguês.

Grau zero da política

Zézero é um caipira na miséria. Seduzido pela sereia da mídia, envolta em fitas de celulóide e exibindo manchetes de jornais de São Paulo e Rio, propaganda de rádio e fotografias de beldades, decide arriscar a sorte na cidade grande. Nem bem chega, é arregimentado para trabalhar na construção civil.

Morando em barraco dentro da obra, vive tensas relações no trabalho e no sexo. No dia do pagamento do salário miserável, observa os capangas do patrão a ameaçar os peões com armas e rosnar como cães de fila (as metáforas de Candeias são cruas e diretas). Procura prostitutas de arrabalde, com as quais se entende mal. Através de cartas escritas por um colega semiletrado dá notícia à família de sua situação. Influenciado pelo meio, acompanha partidas de futebol pelo rádio e o resultado da loteria esportiva. Como os outros peões, hesita em investir no Baú da Felicidade ou na loteca. Tenta a segunda e ganha uma bolada. Compra um carrão e presentes, tudo conforme manda o figurino do consumo. Chega buzinando de alegria na sua casinha miserável e procura a família. Encontra o lugar abandonado. Uma moda de viola informa que estão todos mortos, enterrados. Depara-se com a tosca sereia e pergunta: “Agora, que faço com o meu dinheiro?”. A resposta não poderia ser mais chula.

Nessa parábola sobre a falácia da mídia e a exploração sórdida dos precários trabalhadores rurais e urbanos, constrói-se uma implacável crítica do milagre econômico do regime militar. A condenação de Candeias é dupla: pelo viés moral e político. Contra o artificialismo da situação, as promessas, ilusão e engodo dos poderosos mancomunados. Contra a corrupção do sistema social. Para tornar o prato ainda mais indigesto, Candeias adota a feiúra deliberada como outra ferramenta de agressão à estética burguesa. Aqui não há lugar para o belo.

Intransigente, contundente, distante seja dos mecanismos de bajulação da crítica e do público, seja da politicagem da classe cinematográfica, Candeias construiu um caminho solitário à margem das correntes dominantes. Se às vezes foi reconhecido pela crítica (com prêmios nacionais e internacionais) ou por organismos institucionais (INC/Embrafilme, Secretarias da Cultura), tal fato só demonstra que nós – seu meio – temos plena consciência de seu valor. Quanto à recíproca, alguém poderia dizer que é verdadeira?