Portal Brasileiro de Cinema  Horizonte perdido

Horizonte perdido

João Luiz Vieira

1980-1981: o cinema brasileiro ainda consegue aparecer nas telas com algumas de suas produções de padrão e qualidade global. Porem, já se antevê a crise da metade da década com a multiplicação dos mandados de segurança e com o avanço da pornografia explícita. Entretanto, a possibilidade concreta de um cinema de produção de qualidade que alcance o referencial exibido pela televisão é obrigada, ainda, a conviver com formas mais marginais e alternativas. Mesmo que tais formas jamais alcancem a visibilidade de outras épocas, elas sobrevivem. Principalmente, como expressão de um país onde a dignidade do ser humano, em toda a sua plenitude e significado, é um valor cada vez mais distante.

A deliberada crueldade dos filmes de Ozualdo Candeias, presente, sobretudo, nas características sempre marginais de suas personagens (habitantes de uma geografia de espantosa pobreza), encontra uma vez mais em Aopção a forma perfeita que explode aos olhos e ouvidos do espectador. Aqui, a agressividade de um Brasil contemporâneo, apesar de muito bem representado e presente em determinado tipo de cinema documental realista e tradicional, forma a base para a estruturação da própria narrativa e das formas fílmicas. O pessimismo e a falta de perspectiva em vidas completamente sem rumo, ou com um rumo traçado por estradas que levam a um inferno cada vez mais fundo, estão presentes na materialidade da representação, na qualidade da fotografia, na “pobreza” da quase total ausência de diálogos e na fragmentação da narrativa, construída de estilhaços de personagens anônimos que se entrecruzam em trajetórias marcadas por idas e vindas através de estradas brasileiras. Essa fragmentação acaba compondo pequenos retratos que informam sobre a origem rural da prostituição urbana e sobre o movimento migratório que não leva a nada. Essas mulheres de beira de estrada, anônimos seres que transitam por uma paisagem periférica, por sua vez também composta de fragmentos, detritos e restos de civilização distantes delas, não se desenvolvem como personagens, a partir de uma lógica formal de causa e efeito. A vontade de mudar e as possibilidades oferecidas pelos horizontes de estradas, que servem de fio condutor para os diversos episódios que se entrelaçam, é que levam as personagens de um estado a outro, de bóias-frias à prostituição urbana, numa viagem sempre marcada pela exploração. A “esperança” de uma vida melhor se traduz na própria hierarquização da prostituição, da beira de estrada aos cabarés da Boca do Lixo de São Paulo. Uma personagem lê a carta que recebe da família distante, e a única novidade boa é: “A tua irmã foi para Salvador arrumar um emprego de meretriz”. A narrativa cruza essas personagens através do Brasil, passando pelas regiões ricas do sudoeste paulista, onde a cana-de-açúcar plantada em larga escala alimenta a produção de álcool, seguindo para o sul, voltando depois para o norte, para a região cacaueira da Bahia, e chegando outra vez a São Paulo, capital. Na sua própria concepção de “filme de estrada”, mas principalmente na justaposição dialética entre o Brasil potencialmente desenvolvido e a marginalidade da maioria de seus habitantes, sobretudo mulheres, fica difícil não lembrar Iracema, de Jorge Bodansky. Nele, a jovem prostituta se tornava um emblema visual da situação de exploração ao exibir a roupa estampada com Coca-Cola; em Aopção, a mulher se oferece em frente ao símbolo da Texaco. Nos dois filmes, a mesma exacerbação de estruturas do grotesco e de agressão ao espectador. Aopção freqüentemente lança mão de ruídos que atacam as personagens e desnaturalizam a imagem realista, interferindo num padrão típico do gênero documental. E, na busca da agressão pelo grotesco, ocorrem semelhanças que chegam a lembrar Werner Herzog, que por sua vez também foi influenciado por autores e filmes brasileiros, como Macunaíma e Os deuses e os mortos: um homem torso, mutilados, anões, paralíticos, a cruz de aluguel com rodinhas para facilitar o pagamento de promessas e mulheres lutando em circos.

Cinema Marginal, cinema da pobreza. A fragmentação da forma fílmica repete o estilhaçamento das personagens, cujo único e possível destino acaba alimentando o noticiário policial sensacionalista da imprensa das grandes cidades para, finalmente, acabar na lata de lixo.

Caderno de Crítica, Rio de Janeiro, n. 1, maio 1986. p. 37-38.