A margem

Ody Fraga

Trataremos hoje da mais original vocação de cineasta surgida em toda a história do cinema brasileiro: o diretor Ozualdo Candeias. Como filme-base para apreciação de seu trabalho, utilizaremos cenas de A margem, obra muito individual em sua concepção e visão do mundo e extraordinária na dinâmica cinematográfica, narrativa visual e crueza pictórica.

Se analisarmos em profundidade dois filmes de longa-metragem feitos por Candeias, A margem, sua primeira obra, concebida e concretizada autonomamente, e Meu nome é Tonho, realizado para um produtor comercial, veremos que Candeias, sem se propor a isso, nem tomar atitude intelectual, mas, por força interior, por vivência e também com muito sofrença, é o mais autêntico dire-tor existencialista de todo o cinema. E existencialista sartreano que não se aliena do social.

A margem é um filme existencialista a partir de toda a sua colocação do absurdo humano. Poderemos analisá-lo tomando como base as idéias de Sartre em O ser e o nada, onde ele diz: “É absurdo nascermos, é absurdo morrermos” e os personagens de Candeias, em A margem, são consequentemente sartrianos em seu comportamento. Eles obedecem coerentemente ao pensamento de Jean-Paul Sartre quando, ainda em O ser e o nada, o filósofo francês afirma: “Toda minha maneira de ser, manifesta liberdade igualmente, já que são os caminhos de ser meu próprio nada”.

Bem existencialista é, também, a aproximação estrutural da tragédia grega que Candeias estabelece na abertura de A margem. O destino de todas as personagens está marcado inexoravelmente. Seja qual for a atitude e o comportamento dos seres, eles serão inúteis: o indivíduo procurará sua liberdade fazendo sua própria opção perante o mundo; no caso do filme, a de viver à margem da sociedade urbana, alienando-se, mas sem poder modificar seu nada.

A seqüência inicial do filme oferece toda a chave da obra. Candeias diz aí o que tem a dizer, o resto é argumentação e exposição, mas os personagens já estão mortos.

O impressionante, para nós, na realização de Candeias, é que ele não se aliena. A alienação é das personagens. Enquanto os marginais do filme vão vivendo seu nada, cuja libertação já foi anunciada na abertura através da morte, as estruturas sociais de uma forma ou de outra permanecem como pano de fundo, funcionado ainda mais para marcar as personagens.

A margem, em síntese, conta duas historias. Poderíamos dizer, com certa ingenuidade, sem faltar à verdade, que é uma história de amor. Amor sem esperança nem salvação, amor-inferno mútuo. Livres no espaço urbano, as personagens de Candeias vivem no mais absoluto huis clos, fechados nas paredes ontológicas de sua incomunicabilidade, precisando um do outro, na medida em que são a própria forma recíproca da tortura.

Marca frisante do existencialismo de A margem Candeias estabelece em três personagens com seus mitos alienados: Bentinho e a flor, o padre, e o motorista de imaginários caminhões.

Nosso tempo é curto. Necessitamos analisar um pouca a situação de Ozualdo Candeias dentro do panorama do cinema brasileiro. Formularemos uma pergunta: O cinema de Ozualdo Candeias é Cinema Novo? Não. Cinema Novo é um rótulo, nada significa. Nada define. Dentro desse rótulo pode caber muita coisa: A demagogia barroca de Glauber Rocha e o infantilismo de Rogério Sganzerla; o artesanato de Vidas Secas ou a “chancada” intelectual de Macunaíma. O cinema de Candeias é marginal porque não pode ser filiado a nenhum grupo, seja como posição participante dentro de uma frágil indústria cinematográfica nacional, seja como posição estética e filosófica do cinema em si. Candeias é Candeias. Viu e sofreu o mundo assim; assim o passa para a tela. Sua forma cinematográfica é só sua.

Quando alguns pretendem aproximá-lo de Luis Buñuel, essa aproximação só é possível devido a certa identidade de temperamento, mas Candeias consegue sempre o que Buñuel consegue raramente, quando o consegue: ser poeta, ter o sentido lírico da situação, ver sua essencialidade. Exemplo disso é a andança matrimonial da preta, em seu cândido vestido de noiva.

Nosso objetivo, neste programa, foi chamar a atenção para a obra de Candeias, num plano de analise mais sério. Seu cinema é, entre o dos realizadores brasileiros, aquele que exige e merece estudo, pois está acima do circunstancial e da produção para o consumo de massa, ou para o consumo de grupos que se entusiasmam com o frenesi por influência gregária e convencional. Encerrando, vamos fechar o ciclo de A margem com a seqüência em que as personagens, cumprindo seu destino, são recolhidas pela morte, tendo de continuar o absurdo de permanecerem juntas.

Texto para o programa Cinema/Arte/Cultura nº12 TV2 Cultura.