Zézero

Paulo Emílio Salles Gomes

A moça acena para o jovem caipira com as facilidades e prazeres da grande cidade. Ele se des-pede dos amigos e da família, e parte. Na cidade brutal tudo é enlameado e sórdido: o trabalho, a morada, a comida e o sexo. Logo não terá condições de mandar dinheiro para a família. A única esperança é a loteria esportiva. A sorte o favorece, mas quando volta para casa a família está na cova. Pergunta o que vai fazer com todo aquele dinheiro e a garota-propaganda da civilização lhe dá uma resposta chula.

No início do filme a garota-propaganda é uma sereia irrisória, louquinha, enfeitada com fitas de celulóide, cujo canto consiste num arsenal de periódicos: os jornais mais importantes do Rio e de São Paulo, as revistas sérias e as outras, a publicidade, os empregos, os crediários e as mulheres nuas.

O cabloco ingênuo do começo de Zézero, com seu feixe de lenha no ombro, era, em ultima análise, feliz. A noção de que o dinheiro não traz felicidade se insinua, e também a idéia de que a miséria rústica é, afinal de contas, preferível à ilusão urbana. Esses arquétipos tradicionais de certo anarquismo, de certa literatura, e de certo cinema são, porém, sufocados em Zézero pela mais crua desesperança. Depois do prólogo da sereia, a história é desenvolvida de forma metódica e sem perda de tempo. Ultrapassados os umbrais da estação de Sorocaba, a miséria se revela. O caipira pratica um pouco de mendicância mas é logo aliciado pela construção civil. Num fluir do quotidiano, descrito com pontual repetição, são abertas duas ordens de parênteses, colunas mestres do âmago da fita: as cartas para família e a satisfação sexual.

O filme permite que o espectador leia, com dificuldade, o texto ditado pelo caipira e escrito por um amigo semi-analfabeto. Seguindo a trilha de um bilhete afixado à porta de Buñuel, o cinema moderno (sobretudo Godard) tem perseguido a expressividade das palavras manuscritas, mas só encontro equivalência para a potencialidade dramática das cartas de Zézero em algumas do diário do padre Bernanos e Bresson. A brecha emotiva é porém mais funda na fita brasileira porque nela individual e social são a mesma coisa.

A quase insuportável gravidade de Zézero, contudo, será imposta pelas cenas de sexo. Em duas ocasiões, o pobre herói se envolve com meretrizes da várzea, uma vez com dinheiro e outra sem. O tratamento visual dado às duas passagens é semelhante. Se bem que em uma o negócio é jogo, na outra, luta. A hostilidade final da prostituta que obteve algum dinheiro ilustra o conceito de que a natureza do sexo pago e do forçado é necessariamente a mesma.

A variedade da expressão dramática é, porém, assegurada pela trilha sonora da segunda seqüência, onde predomina o rosnar de cães enfurecidos. O mesmo tema sonoro já aparecia no dia de pagamento da construção, e a associação não parece fortuita em Zézero. Ela exprime, ao seu jeito, a nostalgia anárquica por um passado mítico de relações harmoniosas, e a aspiração utópica ao trabalho, no entender de muitos, é porém tênue. Nessa fita, qualquer esperança respira mal, as duas seqüências de sexo nos marcam de forma direta e impiedosa. Há algo de inadequado e irrisório no emprego das expressões “meretrizes”, “prostituta” e na sua contratação, a propósito dessas mocinhas paulistanas caçando a subsistência nos terrenos vagos do arrebalde. Afinal, mal conhecemos as palavras novas criadas pelos freqüentadores e usadas por praticantes de uma clandestinidade sexual ao léu e a céu aberto. Algumas delas despontam confusamente na trilha sonora de Zézero, rica em criatividade e drama.

O autor dessa obra com um rebotalho e película é Ozualdo Candeias, responsável por numerosos filmes de A margem até A herança; esse artista original e profundo foi de início muito festejado, mas em seguida seus filmes foram sendo afastados dos espectadores. Ao que tudo indica, Zézero ficará igualmente relegado ao ineditismo, o que é uma pena, inclusive porque a última fita de Candeias fulmina a chamada pornografia que anda preocupando tanta gente. É verdade que Zézero talvez fosse considerado por essa mesma gente um antídoto demasiado vigoroso.

Paulo Emílio – Um intelectual na linha de frente. São Paulo: Brasiliense/Embrafilme, 1986, p. 300-302. Publicado como folheto de programa de cinema do CEFISMA, Centro Acadêmico de Física da USP, São Paulo, 1973.