A margem

Antonio Moniz Vianna

Lançado timidamente (um cinema só, uma única semana em cartaz) no ano de 1967, A margem se reapresenta agora ao exame mais atento, à análise de virtudes inesperadas – volta a propor uma descoberta: a de um artista instintivo e impetuoso, o talento à flor da pele e a coragem da modéstia numa hora em que a soberba, tão mais fácil, serve de álibi ou de máscara a alguns gênios sem talento, sem vergonha e sem caráter. Por muitos motivos, A margem é um ponto de afirmação do cinema nacional, uma vitória silenciosa, Ozualdo Candeias: uma estréia e já uma obstinação suplementada por um sentido poético perfeitamente raro.

A coragem da modéstia não inibe em Candeias outras manifestações de audácia: o realizador, partindo do plano realista mais brutal, às vezes necessariamente sórdido, não vacila em ascender de repente a um plano surrealista, no ritmo, nas feições e nas formas, ou mitológico, na substância dramática que, nessa altura, agita sugestivamente as implicações do mito de Caronte e sua barca. O barqueiro é substituído aqui por uma mulher da seqüência inicial, de uma ou duas aparições intermediárias, e que a narrativa muda de plano quase sem sobressalto. A barca volta para recolher os mortos: os quatro marginais, tomando-a, se libertam ou apenas se evadem.

Não há outra porta para sair da “margem”: nem a da mendicância, nem a da prostituição, nem há a disposição ou a possibilidade de integração na cidade tão próxima. O milagre cinematográfico de Ozualdo Candeias, tão involuntário como a maioria dos milagres, consiste em dar a uma realidade social, um revestimento mitológico. As condições de vida à margem do Tietê estão na tela, sem protesto e sem disfarces – um inferno na terra antes de outro inferno, talvez menos insuportável, ao fim do Tietê, novo Aqueronte.

Um mundo à parte, o da margem, porém visível, palpável, e onde desaguam fugitivos e ex-repre-sentantes de diversas classes. Um desses, vivido por Mario Benvenutti (sempre excelente ator e o único profissional em A margem), proveniente de um nível sócio-econômico mais elevado, ainda insiste em usar gravata, cujo nó ele está sempre a afrouxar, assim como o paletó o aperta – é um homem sufocado, esmagado, até uma corrida sem rumo, num lance de desespero que precede à morte. Uma prostituta negra, interpretada por Valéria Vidal, assume uma presença gradativamente poética, até o momento em que morre, noiva e viúva na mesma decepção intolerável. Um louco, Bentinho, corre de um lado ao outro, à procura de uma rosa – para ele, também, a morte na linha férrea, momentos depois de abrir o caixão, traz de volta à margem a moça (Lucy Rangel) que saíra para prostituição e fôra assassinada. Entre outros personagens, há um que se julga padre e carrega um catálogo telefônico como se fosse a Bíblia, que ele lê mais com a imaginação do que com a memória. Todo esse elenco atua dentro de uma linha de interpretação homogênea e, por todos os motivos, quase inédita no cinema nacional.

Quanto ao diretor-produtor-roteirista-montador Ozualdo Candeias, vale dizer, por enquanto, que surge como um cineasta de talento próprio, ainda que sejam discerníveis influências tão válidas como a de Jean Vigo (L’Atalante) e, em tom menor, a de Fellini, (La Strada). Uma importante estréia, a de A margem, indiscutivelmente o melhor filme nacional do ano passado.

Correio da Manhã - Rio de Janeiro, 18 de abril de 1968.