Portal Brasileiro de Cinema  O limbo das almas e a anomalia dos corpos

O limbo das almas e a anomalia dos corpos

Inácio Araújo

 
Mário Benvenutti

Será preciso um dia nos determos melhor sobre Tambaú, reportagem cinematográfica que Candeias realizou em 1955, que parece indicar precocemente certos rumos da carreira desse diretor.

Em primeiro lugar, Tambaú afasta-se avant la lettre do que viria a ser o Cinema Novo, embora conserve um vínculo mais evidente com o neo-realismo. Ali, a vontade documental de Candeias limita-se à observação horizontal, digamos assim. Diante de um fenômeno de fé (a devoção ao padre Donizetti e suas curas milagrosas), o que interessa ao cineasta não é o padre, nem a natureza da manifestação religiosa, e sim os fiéis, seus rostos, aflições, deformidades. Existe já muito nítida essa paixão por captar a cru, sem nenhum filtro, inclusive ideológico, o que se poderia chamar de “cara da população”. Candeias filma as pessoas, em determinados momentos, de forma magnífica, acentuada pelo fato de estar registrando a última bênção do padre Donizetti e, portanto, a última chance dos peregrinos de obter a graça. O filme existe nessa intersecção entre graça e desgraça, à qual não estarão alheios seus melhores filmes no futuro. De certa forma, Tambaú prefacia o papel de Candeias na Boca do Lixo, da qual viria a ser não apenas um realizador, mas um cultor. Em fotos e filmes, ele registrou mais e melhor do que ninguém esse local onde, entre os anos 60 e 80, existiu a mais intensa atividade cinematográfica de que se tem notícia no Brasil. O sabor de rascunho desses registros vem menos da precariedade da realização do que da forma de encarar o lugar, a atividade cinematográfica e os freqüentadores. Festa na Boca e as duas versões de Uma rua chamada Triumpho apresentam a característica comum de não estabelecer nenhuma hierarquia entre os freqüentadores do local. Técnicos, atores, produtores, fiscais, críticos, figurantes dividem a cena fraternalmente. Do mais poderoso ao humilde puxador de filmes, todos têm direito a seus quinze fotogramas de fama. O que importa são, antes de tudo, os rostos, as expressões, a maneira como os corpos se dispõem diante da câmera.

Cada um desses filmes tem uma particularidade, e o caráter familiar de Festa na Boca chama a atenção por reconstituir o tipo de convivência horizontal que existia ali. É possível que um fotógrafo e diretor como Osvaldo de Oliveira, o Carcaça, ganhasse salário maior que um eletricista como Miro Reis, mas não havia nenhuma distância a separá-los; assim como Antonio P. Galante, ex-maquinista e mais tarde produtor, convivia com um e com outro, mas também com gente intelectualizada, como Rogério Sganzerla e Walter Hugo Khouri.

Nos filmes sobre a Boca, Candeias enfatiza as semelhanças e apaga as diferenças. Não julga: Toni Vieira, Luiz Sérgio Person, Luis Carlos Barreto, Rubem Biáfora, Roberto Santos apresentam-se diante da câmera como os figurantes ou as starlets. Todos buscam essa graça cinematográfica que não sabemos muito bem onde está (no sucesso? na posteridade? no reconhecimento?). Os filmes feitos em tabletop (as duas versões de Uma rua chamada Triumpho) são em geral compostos de fotos posadas. Cada personagem cria de si mesmo a imagem que deseja perpetuar. Candeias não trabalha como o paparazzi que capta à sorrelfa a intimidade dos outros.

No final de um dos filmes, a locução deixa claro o tipo de abordagem. Fala de todas aquelas pessoas, cada uma com sua verdade cinematográfica. E depois lança a pergunta: o que é ser ou não ser sério no cinema? Questão insidiosa, porque o próprio nome Boca do Lixo carregava conotações negativas: era a zona da prostituição, da qual o cinema ali feito seria um análogo. Não tenha dúvida, por questões de disputa de verba e poder mais de uma pessoa tinha interesse em difundir essa imagem.

Essa questão interessa a Candeias, mas subsidiariamente. O que prova a humanidade da Boca não são os filmes feitos ali, nem o posicionamento do diretor. São os rostos. Como em Tambaú.

Na Boca, como em Tambaú, e em outros filmes, Candeias caracteriza-se pela crueza da observação. Crueza ou, talvez, crueldade. A Boca é uma deformidade contida na São Paulo de Piratininga fundada pelo padre Anchieta. Deformidade tão acentuada quanto a dos romeiros que buscam o padre Donizetti. Assim como Donizetti acena aos romeiros, Anchieta abençoa ao final do filme essa rua, esse cinema, essa cidade, como se esperasse ainda algo que viesse a redimi-los. Sabe-se que era preciso um milagre para que aquilo persistisse, assim como parece ser necessário ao menos um por década para que o cinema brasileiro continue a existir. O certo é que havia ali falta de condições, de equipamentos, de orçamento, excesso de amadorismo. A ausência de visão de longo prazo era tão pronunciada como na do pobre menino para cujos olhos o pai buscava um milagre em Tambaú.

Talvez se possa dizer, à luz desses filmes curtos, que o cinema paulista nunca teve outro momento de tão intensa e democrática convivência entre pessoas e idéias as mais diversas como na Boca, mas esse é apenas um detalhe. Insisto: o que conta são os rostos, as expressões – elas é que designam a anomalia, seja a do cinema, seja a das pessoas.

 
Valéria Vidal

A paixão de Candeias pelo anômalo e pelo extraordinário esta presente desde A margem, seu primeiro longa. Existe ali o personagem Bentinho, o retardado que se apaixona pela moça que serve café. Mas o outro homem, Mário Benvenutti, com seus modos fidalgos em meio ao lixo da margem não seria outra anomalia? E a prostituta cheia de bons sentimentos representada por Valéria Vidal, que tem por sonho o véu e a grinalda do casamento? Visão ingênua? Primitiva (como queria Rubem Biáfora)? Pouco provável. Candeias dispõe seus personagens desde então numa situação de equilíbrio precário e é dali que os observa.

Com o tempo essa crueza se mostra mais claramente. Os favelados de Zézero, o mutilado que tenta suprir, com um carrinho de rolemã, a ausência das pernas (já não me lembro em qual filme), os bandidos sádicos de Meu nome é Tonho. Todos esses seres deformados, física ou moralmente, todas essas almas captadas num limbo não são, a rigor, diferentes daquela gente trôpega de Tambaú, que, embora mal consiga se manter sobre as pernas, deposita as muletas em honra ao milagre que, acreditam, aconteceu e os libertou.

O Candeias de Tambaú contém já o Candeias da Rua chamada Triumpho, ou de As rosas da estrada e tantos outros. É o cineasta dos destinos incompletos, malformados, situados entre o milagre redentor e o silêncio espesso da imagem (pode ser a imagem da estátua de Anchieta, pode ser a de uma prostituta em frente a um bar), entre o favor divino capaz de resgatá-las e a impiedade terrena que os desfigura. No caso, a Boca é vista também como uma fraternidade que parece partilhar solidariamente a fortuna e as adversidades de fazer cinema no Brasil. Comunidade desviante em mais de um nível. Não só se dedica a uma atividade marginal, como constitui o segmento popular dessa atividade, ou seja, aquele dedicado aos faroestes e filmes “de sexo”, estigmatizado tanto por dirigir-se a um espectador pouco letrado como por ser realizado majoritariamente por pessoas também incultas.

 

A convivência com o meretrício (à noite, a gente do cinema ia embora e as prostitutas ocupavam a rua) apenas acentuava esse caráter, ao mesmo tempo que servia para reforçar os laços fraternos. Ninguém ali, com a possível exceção dos Massaini, podia se julgar superior aos demais. O figurante de hoje podia se tornar astro amanhã; o modesto maquinista podia muito bem a horas tantas dirigir um filme de sucesso e tornar-se um produtor importante. Ou, vice-versa, algum descuido administrativo fazia um produtor ir à falência e tornar-se empregado da noite para o dia.

A mobilidade social no interior da comunidade era acentuada, e ninguém estranharia a história de um produtor que, após conseguir um diploma de bacharel em direito, passou a assinar seus trabalhos pomposamente, como sendo produzidos pelo “Dr. Fulano de Tal”. Não era uma questão de se atribuir importância, mas de obter, pelo título, uma estabilidade que o dia-a-dia solapava.

Quando Candeias filma ou fotografa a Boca do Lixo é uma espécie de microcosmo que contém todo o mundo, ou pelo menos todo o mundo brasileiro, que está observando. A Boca era uma fraternidade em que os irmãos podiam se chamar Alfredo Palácios ou Puxador de Filmes Anônimo. Todos faziam parte de um mesmo destino maior, cada um era parte de um organismo, de um todo solidário em que cada peça parecia adivinhar que vivia num equilíbrio precário, sinuoso.

Parecia adivinhar? Adivinhava efetivamente? Não sei. Em alguns momentos, com certeza se imaginava que aquilo existiria para sempre. Candeias não estava, acredito, entre os que nutriam essa crença. Candeias documentava. Não se documenta a eternidade. Para quê? Candeias tinha provavelmente plena consciência da precariedade da Boca e a documentava com o mesmo sentimento aflitivo de fim de festa com que foi capaz de mostrar a Tambaú de Donizetti no exato dia em que o padre, pela última vez, lançava de viva voz sua bênção aos fiéis, antes de retirar-se para o claustro. Hoje, quase ninguém mais sabe o que foi Tambaú. Daqui a pouco ninguém saberá o que foi a Boca do Lixo. Candeias, cineasta das existências infortunadas, dos seres que vivem a desgraça em função da hipótese da graça, é também, e muito profundamente, um cineasta da história.