Portal Brasileiro de Cinema  A Boca do cinema

A Boca do cinema

Inimá Simões

Nos idos da segunda metade dos anos 60 e durante toda a década seguinte, quem chegasse à rua do Triunfo, nas imediações das antigas estações ferroviárias, tinha uma imediata impressão de derrocada urbana. A presença dos botecos, inferninhos suarentos, hotéis de alta rotatividade e da população típica que gravitava em torno desses lugares contribuía para o clima decadente. A região fora denominada pela crônica policial de Boca do Lixo, devido às prostitutas, ladrões e meliantes que por ali circulavam. Mas, sob essa aparência duvidosa funcionavam dezenas de pequenas produtoras, lojas de equipamentos, oficinas de manutenção e reparo, além de estúdios de fundo de quintal, todos empreendimentos voltados ao conjunto da atividade cinematográfica, que se instalaram na região no início do século XX, atraídos pela facilidade de escoamento dos filmes para outras capitais e interior do país por meio do transporte ferroviário.

 
John Doo, Lima Barreto e Tomé.

O epicentro da agitação era o bar Soberano, que reinava absoluto. Na hora do almoço o sucesso era o PF (prato-feito), enquanto no final da tarde, no circuito mesa-balcão-calçada, bebia-se generosamente, ao som de muita conversa. Em véspera de filmagem o movimento aumentava significativamente, ocasião em que maquinistas e eletricistas arrumavam trabalho para as semanas seguintes. Atores, mocinhas em busca do estrelato, figurantes profissionais, produtores, jornalistas, fotógrafos, estudantes da USP, o pessoal da Cinemateca Brasileira, todo mundo passava para bater ponto e discutir cinema, comentar os tempos difíceis e idealizar projetos mirabolantes. O saudoso escritor Marcos Rey, que teve várias obras adaptadas para cinema da Boca, aparecia de vez em quando e gostava de dizer que se um forasteiro entrasse no Soberano para comprar cigarro, ao sair já tinha garantido uma ponta num filme qualquer. Segundo ele, bastava dobrar a esquina da Boca para ter “physique du role”.

Por trás desse aspecto algo decadente vibrava o cinema brasileiro de sempre, à base de suor, esperteza e uma dose razoável de romantismo. É bom lembrar que na frente do Soberano estava instalada a Cinedistri, criada por Oswaldo Massaini, em 1949, e produtora de O pagador de promessas, dirigido por Anselmo Duarte (Palma de Ouro em Cannes, em 1962). Perto, a Servicine, de Alfredo Palácios e Antonio P. Galante (que depois constituiu sua própria empresa), que produziu e participou entre 1968 e 1971 de filmes tão distintos como Cangaceiro sanguinário, A mulher de todos, Lance maior, Memória de Helena e Sertão em festa. Ali ficavam também muitas empresas distribuidoras de filmes estrangeiros, e existia até mesmo uma especializada em filmes russos. Sem contar as distribuidoras de curtas-metragens e documentários, freqüentadas pela juventude engajada dos cineclubes.

O fato é que, por uns bons quinze anos, a rua do Triunfo, ou a Boca de Cinema, conforme a denominação mais genérica, recebeu e hospedou gente que chegou em busca de qualquer trabalho temporário, foi ficando e terminou constituindo empresa, arrebanhando parceiros e fazendo capital com filmes – do cangaço tradicional às pornochanchadas provocativas, passando por todos os gêneros imagináveis – que preencheram a programação das salas de cinema, obrigadas pela legislação a manter uma quota mínima para a produção nacional. O momento de ouro dessa produção desvinculada da Embrafilme e de outros órgãos de fomento estatais, se deu principalmente na segunda metade dos anos 70, quando os filmes produzidos na Boca, invariavelmente de baixo orçamento e muitas vezes realizados em parceria com distribuidores e exibidores, ocuparam parcela considerável das telas brasileiras. A participação do público em relação aos nossos filmes foi elevada ao patamar nunca mais alcançado de 30% do cômputo geral, para irritação dos defensores da alta política cinematográfica, que viam nesses filmes de extrato comercial (e não raramente de qualidade artesanal) uma ameaça a nossa cultura.

Foi por volta de 1967, 1968, que o Soberano começou a receber os estudantes e aficionados que iriam constituir o núcleo mais intelectualizado do chamado cinema da Boca do Lixo, fugindo da produção acadêmica-chique, que dera com os burros n’água a partir do desastre do Titanic-Vera Cruz, e que via a Boca como lugar de comércio, de lucro, e portanto um espaço indigno de receber-lhes. Para os moços, dispostos a viabilizar suas idéias, o que mais importava era que ali se fazia cinema. Em meio às discussões no bar-restaurante, chegaram a postular uma estética da Boca do Lixo e a redigir o manifesto do “cinema cafajeste”, contestando tudo o que havia sido feito até então.

O grupo realizou diversos filmes. O primeiro foi As libertinas, em três episódios, algo comum na época, e cujas frases promocionais clamavam por sexo para escandalizar o público. O pessoal da Boca de maneira geral não simpatizou muito com aquela rapaziada estranha e agitada, que terminou por produzir filmes marcantes, entre os quais obras de referência como O Bandido da Luz Vermelha, assinado por Rogério Sganzerla. Candeias, que já fizera sua estréia em longas-metragens com A margem, e tinha idéias claras sobre seu caminho como cineasta, aproximou-se deles, e, dos encontros, surgiu a idéia de promover o Prêmio Ferradura, destinado aos piores filmes do ano, com a finalidade de tirar a Boca de certo comodismo que estava impregnando as produções locais.

O sucesso dos filmes eróticos representou o impulso decisivo da Boca em direção ao primeiro plano do cinema brasileiro. Esse gênero se aclimatou de tal maneira entre nós, que, após o necessário tempo de adaptação, os vínculos com os modelos europeus praticamente desaparecem. Como o futebol, que importado encontrou aqui sua expressão mais criativa, a pornochanchada tinha obtido o maior êxito de público do cinema brasileiro. Em um prazo de menos de uma década, aquele território se constituiu no principal núcleo de produção do país, chegando a responder por mais de um terço dos longas nacionais lançados no circuito comercial até 1980. Fauzi Mansur, Antonio P. Galante, Toni Vieira, Manuel Augusto Sobrado Pereira, Oswaldo de Oliveira, Miro Reis, Ody Fraga (uma inteligência rara a serviço do cinema ligeiro) e Candeias formavam a linha de frente da Boca. Candeias, presente no dia-a-dia, orientava a arraia miúda, criticava os filmes pretensiosos, que buscavam as soluções de efeitos fáceis. Ao mesmo tempo, desenvolvia uma filmografia singular e ainda dirigia Caçada sangrenta, estrelado e também produzido por David Cardoso, “o James Bond do Pantanal”, em seu eterno papel de herói invencível às voltas com belas mulheres nas produções da Dacar.

A Boca de Cinema produziu centenas de filmes neste período que vai até o final da década de 70, quando se inicia um processo de decadência irreversível, resultado de alterações profundas no mercado, que não cabe aqui explicitar. Sem ser uma entidade organizada, a Boca conseguiu reunir num pequeno território da cidade pessoas que representavam tendências e experiências as mais diversas: Luiz Sérgio Person (que fez um filme em episódios com Candeias), Roberto Santos, João Batista de Andrade, Denoy de Oliveira, Egidio Eccio, Walter Durst, Silvio de Abreu, José Mojica Marins. Candeias é personagem desse pedaço da cidade, e graças a seu instinto jornalístico registrou fotograficamente os principais momentos, incluindo as festas e a passagem de figuras ilustres. Só não guardou imagens do coquetel que promoveu no lançamento de Meu nome é Tonho, um faroeste a sua moda: para evidenciar suas discordância em relação aos lances de marketing e ao bom-mocismo que começavam a tomar conta do cinema brasileiro, optou por servir dez litros de cachaça de São Carlos, no Soberano de sempre. A festa foi muito animada e rendeu até matéria no Notícias Populares.