Bentinho

 
Bentinho em teste de ator.

Um caminhoneiro que por estradas retas encontrou uma vereda tortuosa para chegar ao cinema nacional.

Fui convidado por ele para participar de uma cooperativa. A princípio não fiquei muito entusiasmado com sua figura rude e malajambrada: chinelo de dedo, uma velha pasta de papelão nas mãos e um roteiro de dezesseis páginas que pedi para ler. De cara, comentei que aquilo dava para fazer um curta-metragem, e ele argumentou que era somente a sinopse, que o resto estava em sua cabeça. Como não tinha muita experiência em cinema, aceitei o argumento. Disse-me que era seu primeiro filme, mas estava convicto de tudo que queria fazer.

Já tinha um ator de cinema renomado, que aceitaria o desafio: Mário Benvenutti. Me interessei e pedi um tempo para pensar. Fui procurar o Mário, que eu já conhecia, e troquei com ele algumas idéias. O Mário ponderou: “Ou a gente o ajuda a realizar seu sonho ou o filme não sai. Depois, não temos nada a perder, se o filme parar por falta de recursos, só perdemos nosso tempo, porque dinheiro não tem mesmo”. Encontrei Lucy Rangel nos corredores da TV Excelsior, e ela muito entusiasmada disse: “Vamos fazer um filme juntos em que você é apaixonado por mim”. Tinha encontrado o terceiro personagem e o quarto ninguém sabia quem era. Mas com dois atores profissionais já dava para encarar a coisa.

Primeiro dia de filmagem: um jipe, um carro e o carro de Mário, a quem o Candeias pediu que levasse o elenco. Conhecemos o quarto personagem: a Valéria, uma “senhora crioula”, com as ancas protuberantes, um corpo escultural para Di Cavalcanti pintar.

O início da filmagem até foi fácil, eram só passagens por uma ponte de madeira sobre o rio Tietê, e Candeias queria que eu encontrasse um andar diferente, pois na cabeça dele o personagem era meio maluco. Assim ele foi ajeitando o andar de cada um. Ensaiamos umas dez vezes, aí ele cronometrou e disse que tudo tinha de ser feito de primeira.

Fizemos a tomada inicial. Ele deu uma bronca na Valéria, porque ela errou e ele perdeu o negativo. Trocou o chassis da câmera e pediu mais atenção para todos. Foi então que descobrimos que estávamos fazendo um filme com sobras de negativos. Ele então foi filmar uma barca que chegava e ancorava ali perto da ponte.

Ficamos olhando um para o outro. Eu estava de cabeça raspada, a pedido dele, o Mário bem-vesti-do, com uma roupa que trouxera de casa, a Valéria com um vestido estampado que era dela, e a única coisa comprada era o uniforme barato da Lucy. Estava pronto o figurino.

Durante três dias ficamos nessa de passagem pela ponte, na margem do rio Tietê, a Lucy vendendo café pela cidade, e de vez em quando uma tomada minha seguindo ela.

Na segunda semana ninguém mais queria comer a comida que era servida em quentinhas, de tão ruim que era. E o Mário, que tinha um restaurante, resolveu alimentar a equipe. Havia um constante revezamento; quem não tinha trabalho, naquele dia, na Boca do Lixo, filmava. E quem vinha trabalhava na faixa. Só o Neno, diretor de fotografia, não mudava, até que terminassem suas férias na TV Cultura.

Quando começamos a filmar os próximos planos, que mostravam a personalidade de cada um, a coisa complicou, porque tudo estava na cabeça dele, e ele não sabia explicar o que queria. Foi difícil para todos nós entender. A Valéria era a que mais sofria, pois não tinha experiência nenhuma. O Mário, com toda sua educação, conversava com ele até chegar a um denominador comum. A Lucy sofria menos. Eu tinha que fazer dez coisas diferentes para que ele escolhesse uma, pois ele não sabia se o personagem era louco, demente, esquizofrênico, ou autista. Ele só sabia que o personagem era diferente e apaixonado. Foi muito difícil para todos.

Fomos filmar a entrada da barca, que simbolizava a morte de cada um. Deveria ser feito em câmera lenta, através da câmera, porque não tínhamos dinheiro para esse efeito, e era o Neno que tinha de realizar isso, já que suas férias haviam acabado. Foram horas de trabalho, precisava ser feito com o negativo disponível para cada um.

A equipe começou a rarear, as coisas importantes tinham sido feitas, agora o Candeias era câmera, diretor de fotografia, assistente de câmera, enfim, ele e seu jipe eram a equipe.

Terminaram as filmagens com o Mário e a Valéria, e ficamos, Lucy Rangel e eu, para fazer as últimas tomadas do cemitério, que demoraram três dias. Na verdade, saímos do filme achando que perdêramos nosso tempo e que aquilo não ia dar em nada. O Mário, com toda sua experiência de cinema, num jantar no Gigetto, disse que não sabia como o Candeias ia montar tudo aquilo, que estava fora do convencional, mas que tinha sido muito interessante.

Cada um foi cuidar de sua vida: o Mário fazendo filmes, eu voltei à TV, Lucy se casou e foi embora para Espanha e a Valéria se acertou com um conde alemão.

O filme ficou uma semana em cartaz; fracasso de público, em compensação, um sucesso entre os entendidos de arte e no meio universitário. Até hoje, 35 anos depois, é objeto de estudo e debate entre aqueles que querem fazer cinema, um verdadeiro fenômeno na história cinematográfica nacional.