Portal Brasileiro de Cinema  Jean-Claude Bernardet

Jean-Claude Bernardet


 

 

A primeira conversa que tive com Ozualdo Candeias foi espantosa. Inesquecível para mim, talvez para ele também, já que muitos anos depois, divertindo-se, fez referência a ela. O encontro ocorreu dias depois de eu ter visto A margem pela primeira vez.

 

O filme tinha me surpreendido por diversos motivos, um deles é que não sabia como inseri-lo na filmografia brasileira. Tematicamente, estilisticamente parecia não ter antecedentes no Brasil. Meu gosto por A margem era bastante dividido. Por um lado, gostei imensamente desses personagens à deriva, que perambulavam por zonas limítrofes em deterioração, dessas relações entre eles que se esboçavam mas não se consolidavam. E também da seqüência do café no centro da cidade. Por outro lado, apresentei uma nítida resistência aos seus elementos obviamente simbólicos, como a barca de Caronte.

 

Os aspectos de que gostava me sugeriram uma relação com filmes da vanguarda francesa dos anos 20. Essas andanças, esses descampados (e uma relação com Limite que só depois poderíamos estabelecer, já que naquela época o filme de Mário Peixoto não circulava), esse esgarçar da trama. Essa possível afinidade com a vanguarda francesa foi o que comentei com Candeias, para a maior surpresa de sua parte, pois ignorava que tal relação pudesse ser estabelecida, como também, acredito, desconhecia sua existência. De repente, Candeias e eu nos encontramos em dois universos culturais que não se comunicavam bem. Candeias não entendia a relação que eu fazia, mas achava ótimo. E eu ficava sem entender como este cineasta tinha chegado a um tal filme inaugural, que não se encaixava em lugar algum. O que revelava a força de Candeias, seu excepcional talento visual e rítmico, que ele tirava de si próprio e não de uma formação cinematográfica que lhe teria proporcionado uma filmografia a que se pudesse filiar A margem.

Depois, vários encontros ocorreram, mas um deles não foi menos surpreendente do que o primeiro. Acredito que tenha sido depois de As bellas da Billings. Particularmente seduzido por traços deambulatórios e limítrofes que me tinham interessado em A margem, mas que agora, depois de As rosas da estrada, apresentavam-se depurados, seguros, livres de uma carga simbólica explícita, pensei que seria difícil comentá-los com Candeias, embora vinte anos tivessem decorrido desde A margem. Quando Candeias me perguntou o que eu pensava do filme, embora tivesse gostado muito, fiquei hesitante quanto ao que dizer.

Encaminhei a conversa no sentido de Candeias me dizer o que ele pretendia com esse filme. Explicou-me, então, que o filme era uma advertência às moças que se prostituíam ou pensavam em ser prostituir, uma advertência às famílias, que não havia nenhuma esperança nesse futuro, mas só degradação, humilhação. Essa mensagem moralista em que Candeias via o aspecto mais relevante de seu filme, para dizer a verdade, não só eu não a tinha percebido, como, para continuar a dizer a verdade, não lhe dava a menor importância. Como, acredito, todas as pessoas do meu meio cultural que apreciavam esses filmes de Candeias.

Cheguei à conclusão de que havia dois cinemas de Candeias. Um deles eram os filmes que ele fazia, com suas preocupações. Outro, eram os filmes que nós víamos. Esses dois cinemas ficavam superpostos, mas não se entrelaçavam necessariamente. Pouco nos importavam as recomendações morais. E para Candeias, o simples caminhar pela estrada, o andar a esmo, o rítmo do andar, a espera de algo vago e indeterminado, o desejo latente e sempre insatisfeito, uma pulsação de vida mínima em ambientes degradados, esse despojamento do estilo reduzido a um quase nada às vezes bressoniano (nenhuma intimidade entre Mouchette, as Rosas e as Bellas?), esses elementos não interessavam se não viessem carregados das implicações morais que ele lhes atribuía. Candeias sabe por que amamos seus filmes?