Portal Brasileiro de Cinema  A FREIRA E A TORTURA

A FREIRA E A TORTURA

Ficção, 1983, 35 mm, Cor, 85 min

 

Adaptação da peça O milagre da cela, de Jorge Andrade. Freira é presa como subversiva devido a sua atuação lecionando aos pobres. Uma vez na prisão, é submetida a vários tipos de tortura, inclusive sevícias sexuais. Entretanto, o delegado responsável pela investigação acaba por se apaixonar pela firmeza ética e pela beleza da religiosa.

Quando foi liberado pela Censura Federal, sob veemente protesto e com voto contrário da então chefe do órgão, a famigerada Solange Hernandez, A freira e a tortura provocou uma insólita mobilização de protesto. Programou-se uma pré-estréia paulistana no cinema Marabá para o dia 3 de fevereiro de 1984. Na ocasião, um ato público contra a censura e a ditadura militar seria liderado pelo sociólogo Fernando Henrique Cardoso. Era a primeira vez que um filme erótico, egresso da Boca do Lixo e realizado por um artista popular, granjeava a simpatia de parcela expressiva da elite política e intelectual, tornando-se mais um símbolo de luta contra o regime.

A freira e a tortura não era propriamente um filme político, embora Candeias procurasse de forma clara e decidida expor o abuso de poder que acompanhava as práticas da repressão e a corporificação do estado anti-democrático. Chegou mesmo a fazer uma citação crítica ao governo Médici, cortada da montagem final pelo produtor, criando um vínculo direto e histórico entre o poder estabelecido e a violenta perseguição política aos terroristas e subversivos. O que importava, porém, era menos a excepcionalidade do momento do que a sua aparente banalidade. A reação dos que gravitam em torno do comando policial repressor é menos de espanto ou temor do que de desdém diante de uma situação por demais conhecida e antiga, pelo menos em relação aos marginalizados de sempre – prostitutas, loucos, pés-rapados.

 

Esse aspecto distancia a obra fílmica de sua fonte teatral e a aproxima do tradicional universo de Candeias. Embora seja seu filme mais linear, estável e “psicológico”, ressurgem aqui e ali marcas de estilo (o trabalho com o foco/desfoque, o uso intenso da zoom, as locações precárias, deterioradas, a presença de não-atores, o espaço da periferia urbana, o corte abrupto) e principalmente o tratamento lírico-patético dos deserdados da sorte. Nesse sentido, retoma-se o retrato de grupos que estão ou se colocam à mercê de engrenagens sociais opressoras e sua característica alienação. Reativa-se igualmente o acompanhamento de protagonistas que se debaterão contra esse estado de coisas.

Em A freira e a tortura essa trajetória será rebatida e continuamente amplificada pela metáfora óbvia da prisão. O cenário físico da cadeia, para onde confluem a freira e o delegado, replica os desejos reprimidos da mulher sob manto de freira e do algoz pai de família e funcionário público. A conscientização política da freira se dá antes de tudo ante a Igreja, em um plano social, ético e psicológico. A superação dessa opressão institucional abrirá caminho para o verdadeiro compromisso e, ao cabo, humanizará o torturador. O sexo representará o duplo papel de instrumento de opressão e de libertação. Ao estoicismo cego que conduz as personagens se sobreporá a redenção, ou mais propriamente o sublime, em chave típica da obra de Candeias.

 

A freira e a tortura é um melodrama erótico-político que retoma com certa ousadia as pretensões de determinado cinema humanista ao não rotular e estigmatizar vencedores e vencidos em meio a tempos sombrios. A historinha da freira presa sob suspeita de subversão mantém o interesse com reviravoltas surpreendentes e sempre respeitando a moldura do gênero que a conduz.

Hernani Heffner

Direção, roteiro, fotografia e seleção musical: Ozualdo R. Candeias.

Montagem: Jair Garcia Duarte.

Produção: David Cardoso.

Cia. produtora: Dacar Produções Cinematográficas.

Elenco: David Cardoso, Vera Gimenez, Sérgio Hingst, Cláudia Alencar, Sônia Garcia, Edio Smanio, Elisabete de Luis, Lígia de Paula, Nestor Lima e Luis Vargas.